Rangel Alves da
Costa*
Do sertão
histórias sei de encher alforje e embornal. Abarrota e transborda com gosto de
querer mais. Tudo catado nas andanças, recolhido na boca do povo, preciosas
sobras depois de um proseado debaixo de um pé de pau ou por cima dos velhos troncos
nas malhadas das moradias distantes.
De tudo se
tira uma lição, diz o ditado. E no sertão tudo é ensinamento, desde o amanhecer
ao anoitecer, sem esquecer a madrugada transformada em sonhos com chuvaradas,
trovoadas e a terra cheirando a esperança. Ali se aprende sem precisar de lápis
e caderno, bastando viver seu cotidiano para ser doutor da existência de um povo.
E que povo grandioso é o sertanejo.
Sou de lá.
Filho de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo, sou de lá sim senhor, com
altivez e demasiado orgulho. Se não fosse a incúria do governante insensível e
desumano, de paraíso é que o sertão deveria ser chamado. Um jardim com flores
de cactos e flamboyants espinhentos; uma fonte de água que um dia virá.
Por falar
em água, coisa tão preciosa pelas bandas de lá, interessei-me agora por contar
um causo que se passou comigo, e exatamente num instante em que andava catando
histórias para encher meu alforje e embornal. Encontrei um velho e puxando de
um a outro proseado, acabei falando em contrastes: seca e água. Então o dono do
tempo olhou pra mim com aquela secura profunda no olhar sertanejo, e disse:
“O sertão
é tudo e tem de tudo, toda essa maravia que a gente vê, que sente, que gosta.
Mai no sertão num tem nada, fica tudo feio e isquisito se num tem água de
beber. Água de beber é tudo, meu fio, poi sem o tiquinho se derramano na caneca
pá moiá a goela da gente num somo nada...”.
Palavras
tristes a do velho, discorrendo acerca de como era ser sertanejo e viver numa
situação daquelas de estiagem, de seca inclemente, sem chuva que junte água e
permita plantar e colher. Depois eu conto o resto, mas sobre a água de beber - e
pela tristeza poética com que relatou - é que me sinto na obrigação de
descrever agora. Eis:
“Quano a seca vem e cum mais tempo tudo começa
a esturricá, entonce a gente já sente quantos tipo de água a gente passa a ter.
E isso pruquê além da água de beber tomem existe outas água de época de
estiage. Tem a água do bicho, que á aquela saloba do riachim, do fundo do poço
cavado, e que a gente sabe que eles bebe só pá enganá a boca, poi lá dento é
muito pió, num sargamento que num acaba mai...”.
Então
perguntei se não era pior que os animais bebessem dessa água salgada, vez que a
sede pode ser redobrada depois. E ele respondeu:
“E pruquê
é que os bicho geme tanto, berra tanto e diferente na época da seca grande? Pru
causa disso mermo, pruquê se corrói da água sargada pru dento e num tem outa
água pá acarmar a situação. E se a gente for dar aos bichim o restim da água
mió, daquela que se afunda no pote, entonce quem vai morrer é a gente...”. E
continuou:
“Mai cuma
eu dixe, além da água de bicho, que é aquela sargada do fundo do riachim, tem
tomem as água de pranta que a pórpia natureza bebe que é pá num secá de veiz.
Vosmicê se num sabe vai ficá sabeno, mai tem muita água de pranta pru dento
dessa mataria. A gente num vê não, mai cada pranta dessa, cada auve é cheia de
munta água escondida nas foia, nas raiz, nos tronco e pru todo lugar. Cuma a
natureza é sabida demai, entonce vai guardano tudim pá os momento de percisão,
e quano a seca bate feroiz entonce vai bebendo aquilo que guardou. Mas se fartá
água pru lá entonce é siná que a gente num tem nem mai um tiquim de água de
beber...”.
Perguntei
como eles faziam para não deixar faltar a água de beber. E ouvi:
“A gente
reza, a gente ora, se ajoeia devotado ainda mais ao bom Deus pedino pru tudo na
vida que num premita que acunteça uma disgraceira maió. E quano os pote já tão
lameano, quano a moringa fica difice de encher, quano a gente passa a ter mai
sede do que água, entonce é um desespero. Tem gente que vai simbora, tem gente
que num tem pá donde ir e vai ficano aqui mermo no sofimento. Mai sempe orano,
sempe rezano, sempe fazeno pormessa, e até porcissão a gente faiz. E quano a
gente pensa que num tem mai jeito, entonce se abre as tornera do céu, na voiz
de Deus abençoado. E entonce é uma festa seu moço, uma festa de arrumá inté
sabunete pá tomá banho debaxo das gotera, no meio do tempo. E é assim que sempe
vem a nossa sarvação”.
Foi dessa
sabedoria que bebi na fonte. E não me canso de ter sede da presença, do
convívio e do proseado com esse povo tão meu sangue e raiz. Eis a grande
diferença da vida: nascer no sertão e dele ser tão!
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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