SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

ÁGUA DE BEBER


Rangel Alves da Costa*


Do sertão histórias sei de encher alforje e embornal. Abarrota e transborda com gosto de querer mais. Tudo catado nas andanças, recolhido na boca do povo, preciosas sobras depois de um proseado debaixo de um pé de pau ou por cima dos velhos troncos nas malhadas das moradias distantes.
De tudo se tira uma lição, diz o ditado. E no sertão tudo é ensinamento, desde o amanhecer ao anoitecer, sem esquecer a madrugada transformada em sonhos com chuvaradas, trovoadas e a terra cheirando a esperança. Ali se aprende sem precisar de lápis e caderno, bastando viver seu cotidiano para ser doutor da existência de um povo. E que povo grandioso é o sertanejo.
Sou de lá. Filho de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo, sou de lá sim senhor, com altivez e demasiado orgulho. Se não fosse a incúria do governante insensível e desumano, de paraíso é que o sertão deveria ser chamado. Um jardim com flores de cactos e flamboyants espinhentos; uma fonte de água que um dia virá.
Por falar em água, coisa tão preciosa pelas bandas de lá, interessei-me agora por contar um causo que se passou comigo, e exatamente num instante em que andava catando histórias para encher meu alforje e embornal. Encontrei um velho e puxando de um a outro proseado, acabei falando em contrastes: seca e água. Então o dono do tempo olhou pra mim com aquela secura profunda no olhar sertanejo, e disse:
“O sertão é tudo e tem de tudo, toda essa maravia que a gente vê, que sente, que gosta. Mai no sertão num tem nada, fica tudo feio e isquisito se num tem água de beber. Água de beber é tudo, meu fio, poi sem o tiquinho se derramano na caneca pá moiá a goela da gente num somo nada...”.
Palavras tristes a do velho, discorrendo acerca de como era ser sertanejo e viver numa situação daquelas de estiagem, de seca inclemente, sem chuva que junte água e permita plantar e colher. Depois eu conto o resto, mas sobre a água de beber - e pela tristeza poética com que relatou - é que me sinto na obrigação de descrever agora. Eis:
 “Quano a seca vem e cum mais tempo tudo começa a esturricá, entonce a gente já sente quantos tipo de água a gente passa a ter. E isso pruquê além da água de beber tomem existe outas água de época de estiage. Tem a água do bicho, que á aquela saloba do riachim, do fundo do poço cavado, e que a gente sabe que eles bebe só pá enganá a boca, poi lá dento é muito pió, num sargamento que num acaba mai...”.
Então perguntei se não era pior que os animais bebessem dessa água salgada, vez que a sede pode ser redobrada depois. E ele respondeu:
“E pruquê é que os bicho geme tanto, berra tanto e diferente na época da seca grande? Pru causa disso mermo, pruquê se corrói da água sargada pru dento e num tem outa água pá acarmar a situação. E se a gente for dar aos bichim o restim da água mió, daquela que se afunda no pote, entonce quem vai morrer é a gente...”. E continuou:
“Mai cuma eu dixe, além da água de bicho, que é aquela sargada do fundo do riachim, tem tomem as água de pranta que a pórpia natureza bebe que é pá num secá de veiz. Vosmicê se num sabe vai ficá sabeno, mai tem muita água de pranta pru dento dessa mataria. A gente num vê não, mai cada pranta dessa, cada auve é cheia de munta água escondida nas foia, nas raiz, nos tronco e pru todo lugar. Cuma a natureza é sabida demai, entonce vai guardano tudim pá os momento de percisão, e quano a seca bate feroiz entonce vai bebendo aquilo que guardou. Mas se fartá água pru lá entonce é siná que a gente num tem nem mai um tiquim de água de beber...”.
Perguntei como eles faziam para não deixar faltar a água de beber. E ouvi:
“A gente reza, a gente ora, se ajoeia devotado ainda mais ao bom Deus pedino pru tudo na vida que num premita que acunteça uma disgraceira maió. E quano os pote já tão lameano, quano a moringa fica difice de encher, quano a gente passa a ter mai sede do que água, entonce é um desespero. Tem gente que vai simbora, tem gente que num tem pá donde ir e vai ficano aqui mermo no sofimento. Mai sempe orano, sempe rezano, sempe fazeno pormessa, e até porcissão a gente faiz. E quano a gente pensa que num tem mai jeito, entonce se abre as tornera do céu, na voiz de Deus abençoado. E entonce é uma festa seu moço, uma festa de arrumá inté sabunete pá tomá banho debaxo das gotera, no meio do tempo. E é assim que sempe vem a nossa sarvação”.
Foi dessa sabedoria que bebi na fonte. E não me canso de ter sede da presença, do convívio e do proseado com esse povo tão meu sangue e raiz. Eis a grande diferença da vida: nascer no sertão e dele ser tão!
  
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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