SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 19 de março de 2018

COMENDO PALMA E BEBENDO SUMO DE CACTO



*Rangel Alves da Costa


O episódio da família filmada enquanto comia palma acabou se tornando uma verdadeira lenda da chacota nos rincões sertanejos. Tido depois como mera encenação perpetrada pela administração municipal, a intenção era mostrar que o povo da terra estava tão faminto e necessitado que até de comida de animal estava se alimentando.
Tal fato aconteceu envolvendo o município sergipano de Poço Redondo, fincado nas lonjuras dos sertões esturricados em épocas de secas grandes. Dizem que um prefeito convidou uma equipe televisiva e levou a reportagem até um lugarejo empobrecido nas entranhas da caatinga. Lá a reportagem se deparou com uma situação estarrecedora: ao invés de feijão e carne nas panelas, apenas palma sendo pinicada para o almoço do dia. Mas, como dito acima, tudo encenação.
A intenção do prefeito era mostrar que a pobreza e a carência alimentar estavam tão extremas que a única solução encontrada pelas famílias era comer palma, comida de bicho. O espanto maior, contudo, não foi pela cactácea servindo de alimento, mas pela descoberta posterior da encenação. Até mesmo porque comer palma nunca foi coisa do outro mundo para o sertanejo. Não só palma como a carne existente em outras cactáceas, bastando retirar a pele com os espinhos para encontrar o embranquecido macio e até apetitoso, segundo a fome que se tem.
A vida cangaceira, por exemplo, tinha no cacto um alimento bastante usual. Quando a fome apertava não havia outra saída senão fazer valia das espinhentas para ter o alimento que tanto necessitavam. Com os punhais afiados, retiravam os espinhos e o endurecido da pele, e depois se fartavam da polpa. Também bebiam água das plantas e utilizavam a baba para passar nos lábios e curar feridas. Daí que mandacaru, xiquexique, jurubeba, palma, e até urtiga, tudo servia como alimento aos cangaceiros, mas também coiteiros e volantes.
É que a fome não dá opção de escolha de prato. E na vida catingueira, sem a farinha e a rapadura no aió, sem a farofa com o pedaço de preá assado no embornal, e sem água no cantil, não há mesmo jeito a dar. Ou se submete ao que encontrar ou terá dificuldades de prosseguir na jornada. A própria mata possui muitas opções alimentares, pois são muitos os frutos e flores que servem como alimentos. Entretanto, em situações extremas, onde não há nem um pé de araticum nem de melão do mato, não há outro jeito senão torcer para encontrar um cacto que possa fornecer a carne tão desejada.
Muitos não sabiam, mas a verdade é que pelos sertões inteiros a fome é trespassada pela flecha do que se tem. Sempre foi assim. Desde seus primórdios que o sertanejo inventa e reinventa seu alimento segundo aquilo que pode dispor como comida. Come-se calango assado, grilo e gafanhoto. Come-se raiz, folha e flor. Come-se cobra assada e até bicho que não se come. Come-se o impensável e até o indesejável. Em situação de fome, não há verdadeiramente muita escolha. O melhor prato e o melhor alimento são aqueles encontrados ao acaso.
A sede também não pode esperar. As caatingas são fartas em plantas que retém água e que servem como verdadeiras moringas perante a sede maior. Em difíceis situações, a única saída é procurar plantas cujas folhas retêm água ou apertar a polpa das cactáceas até que despejem o líquido tão precioso. Sem falar que a suculência das polpas já contém água suficiente para impedir problemas maiores por falta de água.
O frade, ou cabeça-de-frade como costumeiramente se diz, é uma das cactáceas com mais polpa e mais suco. Desde as flores avermelhadas que nascem acima, tudo serve como alimento e bebida ao homem. Sem falar que em situação de normalidade, a cocada de frade é uma das mais saborosas existentes. Depois de retirado os espinhos e a pele, a carne esbranquiçada é cortada em pequenos cubos e depois é levada ao tacho e ao fogo junto com o leite, o açúcar, o coco e outros ingredientes. Uma incomparável delícia.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: