*Rangel Alves da Costa
Um dia, lá num passado distante, eu já fui
rico demais. Tinha uma fazenda grande cheia de ponta de vaca. O canto do
quintal era meu latifúndio e as boiadas iam chegando depois da caçada de pontas
pelos arredores do velho matadouro.
Eu tinha um montão de dinheiro de papel de
cigarro. Cigarro barato fazia o dinheiro valer menos, mas eu tinha uma caixa de
sapatos cheia de notas de cigarros mais chiques. Na Festa de Agosto, catando
carteira de cigarros jogada pelos visitantes, então eu me sentia um verdadeiro
banqueiro.
Eita quanta riqueza! Tinha carro-pipa de lata
de óleo e um caminhão de madeira comprado na feira. Era dono de um time de
futebol inteirinho, com cada jogador melhor e mais bonito que o outro. Catava
plástico nos quintais, depois pinicava e colocava numa forminha que acompanhava
a lata de leite ninho. Depois era só colocar junto às brasas do fogão e pronto,
não demorava muito e o jogador já estava pronto. Era só tirar da forma, passar
na calçada para alisar e dar nome ao craque. Depois me estendia pelas calçadas
para jogar futebol de botão.
Eu também tinha muita goiaba, muito mamão,
muito caju, mas tudo surrupiado do quintal dos outros. Todo menino fazia assim,
era próprio da idade pular quintais para recolher as frutas ainda no pé ou já
caídas. De vez em quando
avistava uma calcinha de chita pendurada no varal e era uma festa ao olhar.
Eu também tinha um cavalo azalão. Coisa mais
linda era o meu cavalo de pau. Enquanto as menininhas davam as mãos para a
ciranda em noites de lua grande, eu me danava a galope por todo lugar. Enquanto
elas rodavam a ciranda, eu saracoteava pelo ar como cavaleiro da lua.
Mas meu sonho era enriquecer muito mais e
mais tarde ter dinheiro para comprar um espelho ovalado de bolso, um pente
flamengo também de bolso, e uma brilhantina bem cheirosa para passar nos
cabelos. O perfume era a lavanda, era a alfazema, mas tudo isso podia ser
encontrado junto ao espelho do camiseiro.
Mas um dia, depois de uma caçada de
passarinhos nas beiradas do riachinho, minha mãe me disse que os meus dias
estavam contados ali na terra sertão. Então chorei escondidinho, aquele choro
envergonhado de todo menino mimado.
Não, eu não queria partir, eu não queria
viajar, eu não queria sair dali. Eu era rico demais para deixar tudo ali e
andejar pelo mundo sem minha fazenda de ponta de vaca, sem meus milhões de
dinheiro de cigarro, sem meus carros de madeira, sem meu time de futebol de
botão, sem meu cavalo alazão.
Eu era de uma infância tão rica que não havia
outra riqueza que suprisse o andar descalço pelas ruas nuas e empoeiradas, o
banho nu debaixo das chuvaradas, os banhos depois das cheias do riachinho. Meus
amigos, meus pequenos amigos eram muitos. E não poderia haver riqueza igual
noutro lugar.
Mas tive que partir. Colocaram-me na marinete
de Seu Vavá e tive que viajar rumo à capital. Chorei quando saí de casa, chorei
olhando para trás da janela do ônibus, chorei quando cheguei e ainda hoje
choro. Que dor desmedida é a dor da partida, da saudade, da recordação de casa
e da porta da rua adiante!
Não que dali em diante tivesse sido ruim, mas
pela pobreza que passei a sentir depois que a criança em mim também começou a
se despedir. Hoje sei que não há fortuna maior que os doces e verdes anos da
infância. E busco no poeta a saudade ainda sentida:
“Oh! que saudades que tenho da aurora da
minha vida, da minha infância querida que os anos não trazem mais! Que amor,
que sonhos, que flores, naquelas tardes fagueiras à sombra das bananeiras, debaixo
dos laranjais!...”.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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