SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 22 de março de 2018

TODO SERTÃO



*Rangel Alves da Costa


Sou todo sertão. Nasci nas entranhas da terra, sou de barro, sou do visgo do chão. Tenho no sangue a seiva do caroá, da macambira, do mandacaru, do xiquexique, do pé de manjericão. Tenho na pele o abrasado do sol, tenho na face o brilho grande da lua, tenha um destino estrelado e uma estrada de pé no chão. Sou sertão, sou todo sertão. Sou do mesmo visgo do barro do pote de Dona Benvinda. Sou do mesmo couro curtido por Brasilino e do ferro batido e dobrado por Galego do Alto. Sou do tecido grosso, e tão bonito e tão nobre, à moda cangaceira e bordado por Zé de Bela. Sou de entranha trançada na renda de bilros de Carmosina, Clotilde, Arací e Conceição de Laura. Sou molhado da água do cantil de caçador de Seu Ermerindo, de Odon e João de Terto. Sou da mesma obstinação desbravadora dos Lucas, dos Cardoso e dos Sousa. Sou da mesma terra da incansável valentia de Zé de Julião. Sou o grito do gado e o canto de aboio das vaqueiramas da história, por isso sou da raça vaqueira de Abdias, de João Capoeira, de Mané Cante. Sou de espírito tão doce como a cocada de Dona Quininha, de Cecília de Duié e de Naní. Sou do mesmo tacho do arroz-doce de Baíta e da tábua de pirulitos de Luisinha. Sou daquelas delícias preparadas por Maria de Miguel e dos cozidos de Maninho e de Dona Mirian. Sou do sangue cangaceiro do meu tio Zabelê e da amizade cangaceira do meu avô China. Sou tão sertanejo como todo sertanejo que um dia foi e ainda é. Sou Rangel. De Dona Peta e de Alcino. Sou do Sertão e todo Sertão.
Sou todo sertão. Carrego nos meus braços e no meu corpo as mesmas folhagens e os mesmos troncos da catingueira, da quixabeira, da umburana, da caibreira, do umbuzeiro. Tenho no sangue aquele sol mais ardente como aquele mesmo que ardia na pele e corpo da minha gente do cangaço, filhos de minha terra: Sila, Adília, Cajazeira, Zabelê, Canário, Enedina e tantos outros. Sou sertanejo, por isso também sou coiteiro, sou homem de confiança do Capitão, assim como um dia foi Mané Félix, Adauto Félix e Messias Caduda. Sou da roça e do mato, sou da cerca e do cercado, sou de quintal e de cumeeira. Sou casebre antigo e sou sobrado esquecido no tempo. Candeeiro de parede também sou. Sou tudo sertão desde a ribeira do rio à margem do riacho, mas também sou do tanque e do barreiro, sou a pedra da velha lavadeira e seu cantar bonito e plangente. Sou aquela andorinha que ainda voa pelos seus sertões, sou a tem-tem, a fogo-pagô, até o pardal de pé de cumeeira também sou. Sou do mato o mateiro, sou o pescador e sou o dono de todo mistério das noites tão sertanejas. E como sou aquela viola de pinho e a canção dolente de apaixonar. Sou o forró e o forrozeiro, a zabumba e o zabumbeiro, sou o xaxado e o chiado da chinela em noite de leilão caipira. Sou ainda de um tempo de esteira estendida na calçada e rede estendida na varanda. Tempo de compadre chegando para um proseado e Dona Zefinha debulhando o feijão de corda para comer com carne de bode. Sou desse sertão.
Sou todo sertão. Sou a comida mais simples, sou o prato do dia, sou o tiquinho que se tem. Sou a farinha com rapadura, sou a perna de preá tostado na brasa, sou a raspa do tacho, sou o resto de qualquer coisa. Mas também sou a coalhada, sou o pirão de mulher parida, sou o mocotó, sou o pedaço de toucinho abrasado, sou a tripa, sou o bucho. Quem bom ser assim, ser todo e tão sertão. E do sertão a linhagem antiga, herança primeira desde o pai do pai do pai de tudo que é pai. Sou um filho assim, um sertanejo que canta mulher rendeira e ainda segui na história os passos do Capitão Lampião. Sou o sertão catingueiro, da pedra grande, do tufo de mato, do preá escondido e do cágado que só é avistado quando vai cair trovoada. Sou desse sertão de caminhos e trilhas, de vereadas e curvas, de sombreados e árvores nuas. Um sertão passarinheiro e um sertão tão triste sem passarinho. Sou desse voo sobre a terra e sobre o alto, desse espantado voo pela devastação avistada por todo lugar. O sertão da seca e da secura, da fome e da desvalia. Mas sem igual de se nascer e se viver. Sou de um sertão assim. Sou todo sertão em mim.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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