*Rangel Alves da Costa
Talvez numa gaveta de gabinete de delegacia,
ou mesmo em cima da mesa de uma autoridade policial, esteja um caderno de
anotações de como devam ser tratados determinados “bichos sociais”, de como
possam ser abordados determinados “estorvos da vida”, de como mereçam ser
cuidados determinados “bandidos a todo custo”.
Talvez numa gaveta de gabinete de fórum, ou
mesmo em cima da mesa de uma autoridade judiciária ou julgador criminal, esteja
uma agenda de anotações os conceitos pré-constituídos sobre alguns elementos
qualificados como réus e que logo estarão perante a tábua da lei: “Preto,
pobre, preso...”, “Indivíduo de conduta perigosa pelo meio onde vive, pela cor
e pela propensão à prática delitiva...”, “Preto, da favela, um típico marginal
que se desentranha de seu perigoso meio para vitimar a sociedade...”.
Talvez numa gaveta qualquer da consciência
social, ou mesmo no livro sempre fechado da visão social sobre o outro - como
se determinadas pessoas já estivessem predestinadas à adequação aos seus
conceitos de preconceitos -, esteja o norteamento sempre ambivalente de como o
estranho ao seu mundo deva ser qualificado. Tudo na dependência da raça, da
cor, do meio onde vive, do poder aquisitivo, do que significa perante o
primeiro e amedrontado e enojado olhar.
Enquanto isso, nos cubículos imundos das
delegacias, nos subterrâneos onde são jogados os que não servem ao mundo,
misturados estão os que não prestam e os imprestáveis. Alguns não prestam à
vida em sociedade por afrontar o convívio humano pelos delitos e ameaçadas
praticados, enquanto outros são imprestáveis por estarem justamente
caracterizados e conceituados naqueles livros, agendas e papéis dos conceitos
sociais, como “pretos e pobres”, “de raça inferior e propensa à criminalidade”,
“bichos que saem dos seus guetos para aterrorizar a lídima sociedade”.
Por mais que as palavras tentem iludir, por
mais que as atitudes possam mostrar o contrário, não há como negar o
preconceito e a discriminação disfarçados em cada mente julgadora, em cada
pensamento social, em cada olhar da sociedade sobre o que mereça ser visto e o
que precisa ser evitado. Há no ser humano uma Caixa de Pandora inversa: os
males não são espalhados exteriormente, mas de modo interior. Daí o mal estar
muito mais interiorizado do que demonstrado exteriormente. E o preconceito e a
discriminação são alguns desses males que atuam internamente. Dizem uma coisa,
mas no âmago está o seu inverso.
Não adianta dizer que a sociedade compreendeu
o preconceito e a discriminação como males que devem ser evitados. Até que são
evitados exteriormente, mas continuam determinando atitudes exteriores. É como
se a boca dissesse que todos devem ser respeitados e perante sua raça e sua
cor, mas intimamente os negros continuem sendo evitados e até enojados. É como
se dissesse que todos são iguais e todas as pessoas devem ser vistas perante
suas essências humanas, mas intimamente tudo esteja com outra escrita. A
consciência manda evitar o pobre, o negro, o mendigo, a criança de rua, a
pessoa que bate à porta de mão estendida.
Como dito, o ser humano geralmente age pelo
inverso da “pureza” de suas intenções. O que está purificado por fora, pelo
simples dizer, internamente transforma-se em ódio, em hostilidade, em negação, na
verdadeira essência do preconceito e da discriminação. Não só no ser comum, mas
também nas pessoas segundo suas funções, cargos, encargos, autoridades e
profissões. Por mais que se diga o contrário, inegável que o olhar de
determinadas pessoas sobre outras é o que determina sua forma de tratamento, e
daí o antecipado julgamento. Por exemplo, numa mesa de audiência o pobre, preto
e preso, já leva na sua feição muito mais elementos de acusação do que aquelas
contidas nos autos.
Noutra exemplificação, a noção geral de
bandido, de marginal ou de ladrão, criada e arraigada pela sociedade, tem no
negro, no favelado e no pobre, a sua caracterização maior. Por consequência,
ser negro, ser pobre, ser favelado, além do problema social em si se tornou num
grave problema de liberdade humana. O negro, pobre, saído de seu meio para
honestamente trabalhar, não raro acaba sendo confundido pelo olhar
preconceituoso da sociedade e da polícia. E quando injustamente é preso já
leva, infelizmente, sua cor e sua condição social, como principais testemunhas
de acusação.
A questão do preconceito e da discriminação
contra a cor da pele e a condição econômica, acaba produzindo não só a negação
humana contra os direitos fundamentais, os atributos da dignidade humana e o
respeito indissolúvel ao próximo, como um problema maior: a marginalização de
classes pela cor. E marginalização no sentido de criminalização mesmo, vez que muitas
pessoas são criminalizadas pelo simples fato de serem negras e pobres. E
levadas aos cubículos imundos para depois já chegarem sentenciadas perante as
autoridades julgadoras.
Não significa dizer que os negros e pobres
agora presos, encarcerados e apenados, sejam apenas vítimas do preconceito e da
discriminação. Não. Significa dizer que muitos destes são acusados apenas de
serem negros e pobres.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Excelente artigo. Devemos divulgá-lo à exaustão, no propósito de despertar uma consciência pública.
Wellington Mangueira
Advogado/Professor
wellington.mangueira@gmail.com
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