SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 21 de outubro de 2018

CORAÇÕES SERTANEJOS



*Rangel Alves da Costa


Querôncio tentou esconder da esposa a lágrima que lhe escorria. Não adiantou. Desde alguns dias que Zulmira, sua mulher e vida, já vinha pressentindo uma tristeza além da conta na face ressequida de sol do companheiro.
Os olhos então, uma agonia só. Fundos e profundos, sem brilho, sem vontade de nada avistar. Do lado de fora, pelos arredores da malhada, uma vaca berrou. Um berro aflitivo e angustiante. A lágrima de Querôncio se fez em duas. Seu rosto enxurrou. Não podia negar mais nada.
Outro bicho berrou. Mas que mugido dilacerante. Zulmira abriu a janela e o sol entrou em fornalha. Uma língua de fogo, uma sanha terrível. “Ainda tem palma?”. Foi a pergunta da esposa, dizendo tudo em poucas palavras.
“Tem não, muié, tem não. Tomem num tem mais capim seco nem rama de nada. Num há mais nada a fazer. O bicho vai cair de um a um e morrer tudim. Vai tudo virar comida de arubu e carcará. Já deixemo de comer pra dar comida aos bicho, mai agora num tem lá nem aqui...”.
“Confie em Deus, homem, confie em Deus. Deus há de dar a nossa sarvação. Nem a gente nem os bicho vai morrer nessa fogueira não. Quarqué hora a chuvarada vai cair e tudo vai se sarvá...”.
O entristecido sertanejo saiu à porta e avistou o que jamais desejava. Só tinha cinco vaquinhas e duas acabavam de arriar de fraqueza, pela fome e pela sede. Deus do céu, disse gritando por dentro.
De repente surgido pelos espaços de sol escaldante, um urubu se aproximava. Depois mais e mais outro, muitos. Enquanto isso, pelo vão da janela, Zulmira se lançava em rogos, em rezas e orações perante aquela medonha situação. Um velho rosário passeava em seus dedos como gesto de busca de salvação.
Perante a aproximação dos urubus, o aflito sertanejo correu para espantar os carnicentos, mesmo que ainda não houvesse animal morto. Mas se chegassem os carcarás não teria como dar jeito. Seus bicos afiados dizimariam as vidas ainda pulsantes nos bichos. Furariam olhos, sangrariam os pescoços, depois dilacerariam o que restasse além do couro e do osso.
E apareceu um carcará, postando-se à espreita no alto da catingueira. Deus do céu! Exclamou Querôncio. Ficou em tempo de endoidar, sem saber o que fazer. Homem de tanta experiência, mas transformado numa nada perante aquela situação.
Procurou um pedaço de pau e correu pra perto dos bichos caídos. Precisava protegê-los. Mas até quando? “Marido, olhe lá em riba!”. Gritou a mulher. Nuvens negras surgiam ao longe. Talvez qualquer chuva pudesse cair, mas não ainda naquele dia.
Passaram-se três dias até que o nublamento se transformasse em chuvarada. E todos esses dias, sem arribar um só instante de perto de suas crias, o sertanejo protegeu o que lhe restava. E chorou abraçado à vaquinha quando a chuva começou a cair.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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