*Rangel Alves da Costa
Difícil
imaginar, mas na Estrada de Curralinho, nas distâncias sertanejas de Poço
Redondo, um inusitado local de beirada de estrada serve como exemplificação
maior de como a fé do povo transforma um cenário de vingança sangrenta em local
de local de fé. Debaixo de um pé de pau estão fincadas duas cruzes de soldados
mortos em agosto de 37 pelos homens comandados por Corisco numa vingança
perpetrada contra a morte do cangaceiro Pau-Ferro.
Sisi e
Tonho Vicente, soldados que serviam no destacamento policial do distrito de
Poço Redondo (e que nada tinha a ver com a força policial que atirou contra o
cangaceiro), foram emboscados e mortos. Depois disso, a concepção sertaneja de
”malvadeza cometida contra inocentes”, fez com que o local se tornasse em
verdadeiro santuário de adoração e de pedido de curas. Segundo relatos, muitas
curas já foram conseguidas através da intercessão das Cruzes dos Soldados.
Prova
maior são os ex-votos deixados no local. Ex-votos (que significa “por força de
uma promessa”) são oferendas deixadas no local como forma de agradecimento
pelas graças alcançadas. E ali, ao redor das cruzes, mãos, pés, membros, tudo
em madeira, mostrando que mãos foram curadas, pés foram salvos, membros
retomaram suas forças. Assim a fé do povo. E não há como negar a crença pelo
milagre.
Como dito, tudo teve início com uma vingança
cangaceira. A morte do cangaceiro Pau-Ferro gerou um revide tamanho que até
hoje as cruzes da estrada de Curralinho testemunham aquele troco de sangue. Tudo
começou na Fazenda Quiribas, em Poço Redondo. Um grupo de cangaceiros, dentre
os quais Corisco, Mariano e Zé Sereno, repousa tranquilamente nos arredores de
um riacho quando é avistado pelo soldado Miguel Feitosa, ali apenas de
passagem. Retornando imediatamente, o militar avisa ao comando sobre o
ocorrido.
Um pequeno
agrupamento militar é formado e segue em direção ao coito. Ao chegar ao local,
logo percebe que o pequeno número de soldados sequer pode assustar aquele
grande numero de cangaceiros. Então decide recuar. Recuou, mas já distante - e
fora do alcance da cangaceirama - dois soldados resolvem atirar na direção dos
cangaceiros. Um tiro acaba acertando e matando o cangaceiro Pau-Ferro.
Foi a
motivação para que a fogueira se tornasse em odiosa labareda. A cangaceirama
correu no encalço da soldadesca, porém sem alcançar. Mas a vingança estava
jurada, não demoraria muito para que os homens da caatinga farejassem os
culpados pela morte do companheiro e dessem o troco merecido.
Mas a
vingança foi feita em dois que sequer haviam participado daquele episódio. Os
soldados Tonho Vicente e Sisi destacavam na povoação de Curralinho, naqueles
idos de 1937 um lugarejo ribeirinho próspero e porto principal da chegada e
partida de todo tipo de mercadoria daqueles sertões de Poço Redondo, então
distrito de Porto da Folha, quando de lá partiram na companhia de outro
soldado, Miguel Feitosa, aquele mesmo que havia informado sobre a presença do
bando.
Chegando
de canoa de Propriá, Miguel Feitosa certamente desembarcaria no porto de
Curralinho e logo tomaria a estrada normal, sempre utilizada por todos, para
chegar a Poço Redondo. Contudo, imediatamente foi avisado que daquela feita não
fosse de jeito nenhum pela conhecida estrada, pois a cangaceirama estava por
todo lugar. E foi por isso que buscou a companhia protetora dos soldados Tonho
Vicente e Sisi.
No dia
seguinte, segunda-feira, Tonho Vicente e Sisi se prepararam para retornar e,
dessa feita junto com alguns feirantes, pela estrada normal. Após a feira na
povoação, muitos feirantes seguiam aquela estrada para embarcar em Curralinho
em busca de novas mercadorias. Os primeiros que foram passando foram logo
presos pela cangaceirada à espreita. Não lhes interessavam estes, pois simples
sertanejos, mas sim os soldados que pudessem aparecer.
E não
demorou muito para que as expectativas dos cangaceiros se confirmassem. Logo
surgem perante aqueles olhares ávidos por vingança. A confirmação de que se
tratava de soldados surgiu da troca de sinais, mas de repente se percebe que um
estranho está em meio aos dois militares. Este foi poupado, mas não Tonho
Vicente e Sisi. O primeiro, baleado, correu e foi alcançado em seguida. Já o
segundo, depois de preso, amarrado e interrogado, também não teve destino
diferente.
Ainda
hoje, duas cruzes marcam o local da emboscada e onde foram enterrados os dois
soldados. Quem segue pela estrada de Curralinho, do lado direito de que vai em
direção ao rio, facilmente avista o retrato póstumo daquela vingança
cangaceira. E além das duas cruzes, também avistará outro retrato
impressionante: a devoção atual pelos dois soldados mortos.
Com
efeito, muitos moradores chegam ali adoentados, desesperançados, aturdidos
pelas consequências da vida, e se entregam a orações e promessas. E os ex-votos
estão ao redor das cruzes para ninguém duvidar. Cabeça em madeira, pé e mão,
fitas, rosários, dádivas da crença de um povo, ainda que nem sempre saiba dos
fatos que originaram a atual devoção.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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