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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 19 de março de 2014

A CACHAÇA DE FEIRA E O SACO DE OURO


Rangel Alves da Costa*


No sertão acontece de tudo, seu moço. Não se espante nem desmereça os causos ocorridos por lá, pois não há lugar no mundo onde as histórias e estórias mais sejam cultivadas, devidamente colhidas e espalhadas aos quatro ventos, por mais espantosas que sejam.
São inumeráveis os causos envolvendo caçadores que são surrados pelos seres encantados da mata, principalmente da caipora; vaqueiros que se perdem quando entram nos tufos desconhecidos da mataria; ribeirinhos e seus encontros com o nego d’água, com a cobra grande, com peixes monumentais. E causos e mais causos envolvendo todos os tipos sertanejos no seu convívio matuto.
Certamente que os dias de feira acabam rendendo muitas histórias, desde as mais tristes às mais engraçadas, principalmente dizendo respeito àqueles sertanejos que chegam das povoações mais distantes, fazendas e afastados, e acabam pregando o pé no balcão do botequim. E daí só saem quando a banana já está podre ou os cachorros passeiam catando os restos, ou tudo já está acabado, inclusive para eles.
Verdade é que dia de feira é sagrado demais no sertão, mas depois do primeiro gole tudo pode acabar em perdição e reviravoltas de consequências inimagináveis. Muitos que pegam a estrada com o saco nas costas para realizar as compras da semana nem sempre retornam com qualquer alimento pra família. Outros só retornam dias seguintes, com a cara mais lavada do mundo e inventando desculpas esfarrapadas pelo sumiço.
A culpa quase sempre é da cachaça, da pinga, da aguardente, da danada branquinha. Ora, dia de feira é ocasião apropriada para que os botecos e biroscas ergam suas tábuas para oferecer cachaça com raiz de pau bem apurada na umburana, na aroeira, no angico, no cedro, no cravinho, na cinza de cobra. E quem pedir uma dose certamente não ficará apenas nesta.
E não se basta numa só golada porque chega um amigo e outro, vem um estranho pra dar início a um proseado, sempre há quem chegue oferecendo mais uma dose, uma relepada daquelas. E assim, no proseado, passando os beiços no umbu ou na perna de preá assada, vai tomando uma e mais que o tempo passa sem perceber. Sem falar que a danada acaba tomando conta do cabra.
E de repente já esqueceu até do saco vazio pendendo nas costas. E não é difícil que o saco seja entregue ao vendeirim pra guardar enquanto esquenta a língua. Só que dose após dose vai esquentando a língua demais, desabrechando o bucho, desatinando o juízo, e logo começa a cuspideira desenfreada, a falar besteira, a aboiar, a querer brigar. E lá fora a feira chegando ao fim sem que o cabra sequer se lembre do quilo da farinha ou do pedaço de carne.
Como santo de pé de balcão não é garantia alguma na proteção de cachaceiro, não demora muito e tanto faz como tanto fez que ainda exista feira lá fora ou não. A cachaça já lhe tomou tanto o juízo que o problema agora é saber como voltar pra casa, acaso consiga acertar o caminho de volta. E por isso mesmo que enquanto uns se derreiam pelos quatros do botequim outros são avistados riscando estrada num malabarismo indescritível. Tomba aqui, acerta ali, sai costurando o entardecer e conversando com pedra e toco de pau.
E o saco, aquele mesmo saco trazido vazio nas costas, volta mais murcho ainda, pois nem perto chegou do feijão, da banana, da carne, do açúcar, do café, do pirulito da meninada. A única utilidade que tem é servir de travesseiro quando o cabra resolve deitar na beirada da estrada, no meio do tempo. E talvez sonhar levando uma feira sortida, um perfume pra filha e um corte de pano florido para presentear a madame.
Mas certa feita um cabra do meu lugar, lá pelas bandas do sertão sergipano, voltou pra casa tão bêbado que jurou ter avistado uma grande quantidade de ouro reluzindo no meio da estrada. Cheio de contentamento, espantado, sem acreditar no que via, logo cuidou de catar o saco nas costas e enchê-lo de quantas barras ali coubessem. Quase caindo de bêbado, ainda assim pulava e repetia que dali em diante era o homem mais rico do mundo. E que seria recebido com beijos e abraços pela esposa.
Seguiu adiante com o saco de ouro nas costas e foi gritando pela esposa assim que conseguiu ultrapassar a cancela. Vendo o saco cheio, achando que daquela vez o marido não tinha fechado a mão, a companheira nem se preocupou com a visível e lastimável embriaguez. Então ele jogou o saco ao chão e gritou que abrisse para ver quanta riqueza havia trazido.
Assim que o saco foi aberto surgiram ossos de todos os tipos, alguns ainda malcheirosos. Então a mulher gritou: “É osso de gado que você chama de riqueza, é seu cabra safado?”. E sapecou-lhe uns tabefes que ali mesmo ele amansou a cachaça por cima do chão.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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