Rangel Alves da Costa*
Chove lá fora. Desde a madrugada que a chuva
cai sem cessar, continuamente. Ora fininha, ora mais grossa, mas deixando
transparecer que será o dia inteiro assim. Lembrei-me das invernadas no meu
sertão.
Como tomo o primeiro banho ainda na
madrugada, pois levanto ainda com o tempo escurecido, aproveitei para
experimentar sobre o corpo a chuvarada caindo. No quintal, de braços abertos,
apenas colhendo na alma as águas novas da esperança.
Depois que esquentei água e me servi de uma
xícara de café forte e sem açúcar, me dirigi até a saleta da frente do meu
local de trabalho. Ali há um portão que se abre diretamente para a rua. E uma
cadeira espreguiçadeira que divide espaço com plantas.
Em pé, pelo lado de dentro do portão, de
xícara à mão, sorvendo lentamente o café, mirava a rua deserta e o silêncio
entrecortado apenas pela chuva caindo. Que momento mágico, que instante de
instintiva reflexão.
A rua amarelada pela luz do poste adiante,
sentindo cada pingo caindo no vão da luz sonolenta, e o asfalto sendo lavado
pelas águas que já chegavam a escorrer. Asfalto mais enegrecido quando lavado,
mais nu diante da molhação, parecendo um espelho nublado de lágrimas.
Casas fechadas, adormecidas, janelas e portas
resguardando sonhos e pesadelos. Ninguém aparecia numa fresta, abria um lado da
janela, tomava coragem para tomar banho na chuva. Mas as águas que caíam não
eram suficientes para relembrar criancices.
As águas pareciam obedecer ao sopro do vento.
Apenas chuvisco e de repente já barulhando na sua força. Corriam pelas ruas e
desaguavam nos esgotos adiante. E deixavam atrás de si os espelhos molhados e
entristecidos.
Tudo tão belo e tão triste, melancólico,
angustiante. Acontece comigo e com muitas pessoas. Ao entardecer, na noite ou
alvorecer, a chuva tem o dom de despertar sentimentos e nostalgias, reabrindo
livros antigos de saudades e cadernos empoeirados de memórias tantas.
Permaneci uns dez minutos mirando a paisagem
molhada, vendo a chuva caindo, sentindo a simbologia do instante. Acaso tivesse
uma vidraça adiante certamente escreveria uma palavra ou frase que resumisse o
instante. Mas não, pois apenas a visão da chuva lá fora e os retratos se
revelando por dentro.
Sentei na espreguiçadeira. Rentes ao portão,
meus pés eram molhados pelos pingos caindo, ou apenas tomados pelo sopro
molhado dos chuviscos. De vez em quando sentia o corpo espargido pelos vapores
do instante. Mas nada que me fizesse levantar e sair dali e procurar um lugar
mais afastado para continuar apreciando o momento.
Sei apenas que os meus olhos miravam a chuva
lá fora, o negrume espelhado do asfalto molhado, a réstia da dança dos pingos
sob o frágil amarelado da luz. Quem dera um piano suave naquele instante, uma
música clássica de voo e meditação. Tchaikovsky, Vivaldi, Strauss, Mozart,
Chopin, Bach, tudo ali pertinho, mas a música surgia apenas na mente.
E com a música, talvez um noturno na
madrugada, o álbum reaberto, o baú revirado, páginas desfolhadas. Mas recordar
o que num instante assim? Difícil falar sobre a voz do silêncio e os retratos
avistados nas paredes da chuva.
Não sei se os olhos ficaram molhados ou as
lágrimas se confundiram com as águas caindo. Não sei se busquei alguma
recordação ou se as imagens surgiram ao sopro do instante. Não sei se preferia
pensar em alguma coisa quando me chegou algo em maior profundidade.
Mas sei que conversei comigo mesmo como há
muito não o fazia. Meditei sobre a vida e a morte, sobre a existência e a
saudade, sobre o infinito valor das pequenas coisas. Recordei momentos e
sorrisos, adeuses e despedidas. E senti a grandiosa importância da solidão em
momentos assim.
Quem dera mais chuva. Quem dera mais uma
madrugada assim. Não tenho medo de recordar nem de sofrer e nem da solidão e do
silêncio que acabam me trazendo as companhias que preciso para reviver o ontem
e me fortalecer no amanhã.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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