Rangel Alves da Costa*
Quem dera que o espelho na parede pudesse
refletir o passado, mostrar feições de outros tempos, ser como um álbum de
fotografias ou um porta-retratos. E nele talvez encontrar um sorriso, uma
feição de felicidade. Mas não, pois o espelho reflete apenas o momento, uma
dada realidade presente, ainda que de sua visão seja possível rebuscar o
passado através das transformações entristecidamente avistadas.
Assim, aquele que diante do espelho avista o
rosto marcado pela luta, as rugas avançando, o olhar cansado e os cabelos
tomados da névoa dos anos, certamente relembrará momentos outros de olhos
brilhantes e faces com a firmeza da jovialidade. E dessa visão, do retorno a
percursos outros na vida, necessariamente surgirão as recordações, velhos e
amarelados álbuns e reencontrará, como no porta-retratos ali em cima da
estante, toda uma vivência agora transformada em saudade.
E quanta recordação vai surgindo no indivíduo
ali diante do espelho. E talvez diga que não é mais o que era antes. O tempo
quis assim. O calendário foi passando, mudando o retrato e transformando no que
agora avista. O tempo desbota a imagem, a idade cuida de ir lentamente apagando.
Hoje carrega outra moldura, madeira envelhecida ornando o que foi um dia. No
espelho de agora, apenas o véu encobrindo outros retratos idos.
Ainda diante do espelho, o velho baú é
reaberto na memória, restos empoeirados vão vorazmente surgindo, e de repente
já diante do ontem, revendo sua família e amigos, caminhando por vizinhanças de
janelas abertas e flores no jardim. Recorda a infância, as brincadeiras
antigas, os amores e as desventuras, a porta de casa como a maior fortaleza. E
lá dentro a família.
E tudo
relembra. Cada rosto, cada gesto, tantos costumes que não pode esquecer. As
paredes com seus retratos, fotografias querendo sorrir. Casa que se preze
guarda em cima de qualquer móvel o retrato da família. Quando não cabe tudo num
só porta-retrato, as fotografias vão sendo espalhadas em molduras próprias,
numa o casal, noutra os filhos ou com outras arrumações.
O tempo vai passando e aqueles rostos com a
jovialidade de um dia, simplesmente vão deixando aos espelhos que os recobre a
dolorosa tarefa de mostrar o envelhecimento nos tons amarelecidos que vão surgindo.
As cores turvas e as ranhuras nos vidros são as rugas que vão se formando lá
dentro, ainda que a feição seja a mesma na fotografia.
Hoje os cabelos estão embranquecendo, mas nem
parece aquele penteado vistoso do retrato. No sorriso que parecia tão espontâneo
e tão bonito, hoje a sisudez do entristecimento. Do olhar que parecia querer
saltar de vivacidade resta apenas uma sensação de vazio sem brilho e que de vez
em quando vai se molhando em gotas pelos cantos.
Como doem, como afligem essas molduras antigas,
envernizadas, parecendo trabalhadas à mão. E quantas solidões te guardam. O
ontem ali, na quietude silenciosa dos dias, se falasse, se avistasse o hoje, e
como espelho se mirasse, ainda assim jamais imaginaria quanto dolorosa é a
voracidade do tempo, dos anos, da idade.
Seus avôs, seus pais, seus irmãos e ele
próprio - e ainda diante do espelho -, todos ali numa sala, dentro dos retratos
espalhados pelas paredes e móveis. Todos com as faces de então, com as idades de
então, envoltos em molduras, sempre à vista do olhar que os reencontrava para
depois indagar por que mudamos tanto, nos transformamos tanto. E também
perguntar por que somos ainda e já não somos mais.
Muitas vezes aproximou o porta-retrato
perante o olhar e quis enxergar bem de perto aquele sorriso de menino que o
tempo lhe tomou sem pedir licença. Mas não restava mais nada a fazer. Tentou
sorrir o mesmo sorriso, imitar aquele gesto de um dia, mas descobriu que não
somente o sorriso havia sumido como já era apenas a cópia daquilo que os dias lhe
permitiam revelar.
Porém, o que mais doía não era a idade que vai
distorcendo retratos, não era a mudança imposta em cada fotografia, não era ter
se tornado tão diferente daquilo que um dia havia sido. Compreendia que as
pessoas crescem, envelhecem, inevitavelmente mudam, e não seria possível
desejar que o retrato de ontem refletisse a imagem de agora. Não, isso não.
O que realmente lhe mortificava - ainda que
os outros dissessem ser a vida assim mesmo e por isso tinha de acostumar - era
pensar em se reencontrar diante do espelho dali a alguns anos, se lá
conseguisse chegar. Certamente estaria diferente do retrato de agora e toda
essa angústia seria novamente sentida.
Mas assim a vida. Os espelhos do tempo vão apagando
tudo e a existência deve se contentar com os velhos retratos e fotografias.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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