Rangel Alves da Costa*
Numa tapera distante, embrenhada na mataria,
o galo velho anuncia o alvorecer de sempre. Tudo para acontecer novamente, com
o mesmo sol fatigante, o mesmo calor insuportável, a terra esturricada e a
vegetação acinzentada da sequidão. Nada parece mudar.
Todo dia assim, da primeira aurora ao
entardecer, pois quando a noite cai de vez as portas já estarão trancadas e o
mundo ao redor parecendo deserto e solitário. O cair da noite já é noite
fechada, a lua ilumina telhados abertos, casas toscas com seus habitantes
envoltos em máxima religiosidade. Não há povo mais religioso e cheio de fé na
face da terra.
Diante
das imagens de santos pendurados no barro das paredes, ajoelhados diante de
toscos oratórios, recolhidos nos quintais, de mãos entrelaçadas e olhares
contritos ou mesmo mirando um céu imaginário, fervorosamente se entregam às
preces e orações. E tudo na esperança de dias melhores.
“Creio em Deus-Pai, todo poderoso, criador do
céu e da terra e em Jesus Cristo seu único filho Nosso Senhor, que foi
concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria...”. E também “Pai
Nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, vem a nós o vosso
reino, seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu...”. E somente
depois do amém se sentem com proteção para enfrentar os desafios.
Mas o dia inteiro com as forças voltadas aos
afazeres e o espírito em contato com a fé. Devotos do Padim Ciço Romão, sempre
abençoados pelos poderes milagrosos do Frei Damião, dois santos na concepção
nordestina, o sonho maior é qualquer dia subir no pau-de-arara e seguir em
romaria até Juazeiro. De lá, até a rapadura tem o dom de curar e proteger.
Ainda no caminho do entardecer e o fogão de
lenha já está crepitando para receber o cuscuzeiro, a chaleira, a estaladeira.
Isso quando há comida para colocar no fogo, pois nem todo dia se pode contar
com ovos recolhidos ali mesmo no quintal, pedaço de toucinho de porco, farinha
de milho e pó de café.
Houve um tempo que o cuscuz era feito de
milho ralado e o café era batido em pilão e torrado em tacho herança da
escravidão. Um tempo de panela de barro e de tardes cheirando a café. Também o
alimento era mais farto, a terra nunca negava o pão da família. Mas agora tudo
diferente. O desmatamento fez a caça sumir, a terra ficar nua e sem querer
brotar qualquer raiz.
Ali o dia começa ainda na madrugada e termina
na boca da noite. Ao voltar da lide do dia, se algum trabalho houver, o homem
logo procura o pedaço de tronco diante do casebre para sentar e aliviar o
cansaço. Começa a mirar o horizonte, tenta enxergar alguma nuvem de chuva, vai
rebuscando saudades daquilo que ninguém imagina. Certamente coisas de outros
tempos, de um passado onde a sobrevivência não exigia tantos sacrifícios.
De vez em quando uma golada de pinga, cachaça
com casca de pau, ali mesmo mantida para afastar a fadiga e o ranço saudoso. Um
radinho a pilha ligado numa música caipira. Preferia ouvir o som de um berrante
triste ou um aboio melancólico de fazer chorar. Mas muito difícil agora se
ouvir os sons da vaqueirama, da viola de pinho, da sanfona acompanhada de
triângulo e zabumba.
E logo já chegando a hora de fechar as
portas, ainda que permaneçam mais algum tempo sob a luz de candeeiros ou
lampiões. O gole de café, qualquer coisa pra chamar de alimento, ajeitar uma
coisa e outra, e a família já pronta para adormecer. Mas não sem antes lançar
mão de rosários e terços para as preces da noite.
Anoitece mais cedo por ali porque a madrugada
já é instante de acordar. Mesmo não tendo trabalho a fazer, mesmo que a terra
não seja removida naquele dia nem seja necessário pinicar palma para o gado,
ainda assim o dia começa ainda no brilho da lua e no último cricar dos grilos.
O galo desperta pontualmente. Levanta o seu
canto rouco anunciando que já é hora de tudo ter início novamente. Mas não é o
primeiro a acordar. Muito vivente já desceu do ripado da cama desde o bocejo da
madrugada. E quando abre a porta do fundo o galo ainda cochila a noite passada.
A madrugada se vai, mas o tempo ainda está
escurecido, esperando que o candeeiro da manhã logo seja aceso. Pouco barulho
ao redor, apenas os arvoredos com seu farfalhar e a bicharada já se remexendo
nas suas tocas.
Não falta muito para o voo e o trinado no
despertar passarinheiro, e também a andança dos bichos de quintal e arredores.
O cachorro magro, a coruja que fez moradia na cumeeira, o papagaio com sua
mesma palavra: acorda que já é dia!
Pelos arredores a mesma coisa, e por todo
lugar naquelas distâncias matutas. Assim a vida nas brenhas distantes do meu
sertão. Assim a vida de um povo que também sou eu, pois sou sertanejo.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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