SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 17 de março de 2014

DO DIÁRIO DE UM POVO


Rangel Alves da Costa*


Numa tapera distante, embrenhada na mataria, o galo velho anuncia o alvorecer de sempre. Tudo para acontecer novamente, com o mesmo sol fatigante, o mesmo calor insuportável, a terra esturricada e a vegetação acinzentada da sequidão. Nada parece mudar.
Todo dia assim, da primeira aurora ao entardecer, pois quando a noite cai de vez as portas já estarão trancadas e o mundo ao redor parecendo deserto e solitário. O cair da noite já é noite fechada, a lua ilumina telhados abertos, casas toscas com seus habitantes envoltos em máxima religiosidade. Não há povo mais religioso e cheio de fé na face da terra.
 Diante das imagens de santos pendurados no barro das paredes, ajoelhados diante de toscos oratórios, recolhidos nos quintais, de mãos entrelaçadas e olhares contritos ou mesmo mirando um céu imaginário, fervorosamente se entregam às preces e orações. E tudo na esperança de dias melhores.
“Creio em Deus-Pai, todo poderoso, criador do céu e da terra e em Jesus Cristo seu único filho Nosso Senhor, que foi concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria...”. E também “Pai Nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, vem a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu...”. E somente depois do amém se sentem com proteção para enfrentar os desafios.
Mas o dia inteiro com as forças voltadas aos afazeres e o espírito em contato com a fé. Devotos do Padim Ciço Romão, sempre abençoados pelos poderes milagrosos do Frei Damião, dois santos na concepção nordestina, o sonho maior é qualquer dia subir no pau-de-arara e seguir em romaria até Juazeiro. De lá, até a rapadura tem o dom de curar e proteger.
Ainda no caminho do entardecer e o fogão de lenha já está crepitando para receber o cuscuzeiro, a chaleira, a estaladeira. Isso quando há comida para colocar no fogo, pois nem todo dia se pode contar com ovos recolhidos ali mesmo no quintal, pedaço de toucinho de porco, farinha de milho e pó de café.
Houve um tempo que o cuscuz era feito de milho ralado e o café era batido em pilão e torrado em tacho herança da escravidão. Um tempo de panela de barro e de tardes cheirando a café. Também o alimento era mais farto, a terra nunca negava o pão da família. Mas agora tudo diferente. O desmatamento fez a caça sumir, a terra ficar nua e sem querer brotar qualquer raiz.
Ali o dia começa ainda na madrugada e termina na boca da noite. Ao voltar da lide do dia, se algum trabalho houver, o homem logo procura o pedaço de tronco diante do casebre para sentar e aliviar o cansaço. Começa a mirar o horizonte, tenta enxergar alguma nuvem de chuva, vai rebuscando saudades daquilo que ninguém imagina. Certamente coisas de outros tempos, de um passado onde a sobrevivência não exigia tantos sacrifícios.
De vez em quando uma golada de pinga, cachaça com casca de pau, ali mesmo mantida para afastar a fadiga e o ranço saudoso. Um radinho a pilha ligado numa música caipira. Preferia ouvir o som de um berrante triste ou um aboio melancólico de fazer chorar. Mas muito difícil agora se ouvir os sons da vaqueirama, da viola de pinho, da sanfona acompanhada de triângulo e zabumba.
E logo já chegando a hora de fechar as portas, ainda que permaneçam mais algum tempo sob a luz de candeeiros ou lampiões. O gole de café, qualquer coisa pra chamar de alimento, ajeitar uma coisa e outra, e a família já pronta para adormecer. Mas não sem antes lançar mão de rosários e terços para as preces da noite.
Anoitece mais cedo por ali porque a madrugada já é instante de acordar. Mesmo não tendo trabalho a fazer, mesmo que a terra não seja removida naquele dia nem seja necessário pinicar palma para o gado, ainda assim o dia começa ainda no brilho da lua e no último cricar dos grilos.
O galo desperta pontualmente. Levanta o seu canto rouco anunciando que já é hora de tudo ter início novamente. Mas não é o primeiro a acordar. Muito vivente já desceu do ripado da cama desde o bocejo da madrugada. E quando abre a porta do fundo o galo ainda cochila a noite passada.
A madrugada se vai, mas o tempo ainda está escurecido, esperando que o candeeiro da manhã logo seja aceso. Pouco barulho ao redor, apenas os arvoredos com seu farfalhar e a bicharada já se remexendo nas suas tocas.
Não falta muito para o voo e o trinado no despertar passarinheiro, e também a andança dos bichos de quintal e arredores. O cachorro magro, a coruja que fez moradia na cumeeira, o papagaio com sua mesma palavra: acorda que já é dia!
Pelos arredores a mesma coisa, e por todo lugar naquelas distâncias matutas. Assim a vida nas brenhas distantes do meu sertão. Assim a vida de um povo que também sou eu, pois sou sertanejo.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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