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segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A ARTE DE ROUBAR GALINHAS (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Lembro-me bem que roubar galinhas era uma arte exercida com precisão e maestria toda vez que, já altas horas da noite, a turma continuava reunida bebericando na povoação sertaneja onde nasci.
O que se praticava era furto, mas ninguém sabia da exatidão do tipo penal. Então era roubo mesmo, ainda que na calma adormecida dos quintais daqueles tempos. Quintais de galinhas gordas, de capoeira, criadas para os momentos especiais da família.
Ao ilícito da noite seguiam-se os temores e os burburinhos. Os comentários eram muitos, principalmente se as vítimas dos delitos farristas percebiam logo o desfalque no seu poleiro. Contudo, o roubo das penosas era uma arte tão levada a sério que dificilmente se chegava aos nomes dos culpados.
Ora, eram muitos os envolvidos, os cúmplices, os partícipes e co-autores, para citar termos penais que falam em crimes praticados conjuntamente ou com auxílio. Não obstante isso, muitas vezes gente da própria casa cujo galinheiro havia sido afanado era quem dava a dica de como chegar até o poleiro sem acordar o dono.
O itinerário do roubo das galinhas era muito simples, contando com modos de agir parecidos, geralmente com as mesmas pessoas envolvidas e com qualquer um que tivesse mais de três galinhas do quintal. Os boêmios resolveram que seria criminoso demais roubar uma penosa de quem não tinha mais de três no quintal.
Se o número fosse maior, então podia ser gente rica ou pobre, remediada ou morando em casa de barro. Por isso mesmo que a maioria dos donos de quintais tinha o maior temor quando em noite fechada ouviam o cachorro latir pelos fundos ou mesmo pressentia algo errado perto do galinheiro.
Os cuidados eram muitos, intensas as preocupações, contínuas as vigilâncias. Mas não adiantava nada diante das artimanhas, da maestria e das estratégias dos meliantes farristas. Parecia que o álcool consumido, as cervejas em profusão ou as doses à exaustão, faziam nascer naquelas mentalidades ações criminosas perfeitas.
Com um porém. A argúcia, o planejamento e a ação delitiva galinheira não passava disso. Toda a ação se voltava para a subtração das penosas e nisso se bastava. E furto quase famélico, vez que uma vez afanada a penosa, logo era colocada na panela para matar a fome dos farristas. Por isso mesmo jamais foi planejado e levado a efeito qualquer outro tipo de ação criminosa que não tivesse por objeto o roubo de galinhas.
Verdade é que os garotos, os rapazes, a juventude enfim, já conheciam de antemão os quintais que mais tarde poderiam ser atacados. Muitos dos participantes dessas farras noturnas diziam quantas galinhas havia no seu quintal e qual a melhor forma de chegar lá sem despertar o sono de seu pai ou sua mãe. E todos sendo do mesmo lugar, amigos de todo mundo, então já sabiam de cor e salteado de onde sairia o tira-gosto daquela noite.
Contudo, tinham o máximo cuidado para não incorrer em alguns erros tão comuns ou que já tinham prejudicado investidas anteriores. Assim, sabiam que não era boa ideia repetir a ação seguidamente no mesmo quintal, ainda que ali existissem muitas galinhas. Quintal que tivesse cachorro, o próprio morador e partícipe seguia na frente para cuidar do bicho. Quintal com muro era melhor evitar.
E se, durante o evento furtivo, a galinha afanada começasse a querer botar tudo a perder, com barulhos e cacarejos? Isso era um problema sério e que colocava em perigo toda a estratégia. Para evitar isso, então o encarregado da noite levava caroços de milho no bolso e umas três pedrinhas na mão.
Começava a atirar pedras e assim que as galinhas despertassem jogava um tiquinho de milho. E ia jogando cada vez mais perto até onde estava escondido. E quando a penosa estava ao seu alcance não tinha erro. Era só avançar, segurá-la pelo pescoço e colocar um pano envolto à cabeça. Depois era só entregá-la ao cozinheiro da noite.
Antes da empreitada pelos quintais, a panela já ficava com água para ferver. A penosa já chegava descangotada e colocada inteira na água borbulhante. Cinco minutos depois e já tiravam apressadamente as penas, cortando-a em pedaços a seguir e colocada de volta em outra água e com o tempero que houvesse. E mais alguns minutos e o óleo da galinha gorda já escorria nos dedos dos farristas.
Afanar a penosa não era tão difícil assim, cozinhar também não. Com cerveja ou outra bebida, qualquer tempero é saboroso na galinha caipira gorda. O problema maior era saber qual destinação dar as penas. O delito todo mundo poderia negar no outro dia. Mas se o dono da casa percebesse o sumiço e depois encontrasse as penas esquecidas num local qualquer, então o problema estava criado.
Por diversas vezes donos de quintais galinheiros chegaram à delegacia relatando fatos e tendo à mão a prova da materialidade delitiva: as penas. Por isso mesmo que um amigo interiorano tinha o cuido de recolher todas as penas e levar cuidadosamente pra casa. Depois as transformava em enchimentos de travesseiro e, segundo ele, tinha sempre um sono leve e tranquilo.
Só que muitas vezes sonhava abraçando e beijando galinhas de capoeira. E também o galo, de vez em quando.
  

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com     

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