Rangel Alves da Costa*
As primeiras incursões de Alcino Alves Costa pelo mundo do cangaço não aconteceram ao acaso. O município de Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo como palco de andanças e aventuras do bando de Lampião, as famílias relatando as glórias e inglórias dos seus filhos que se tornaram cangaceiros, o convívio com os personagens remanescentes das lides catingueiras, tudo isso potencializava a inclinação para a pesquisa.
Ouvindo de um e de outro os relatos sobre a presença do bando mais famoso na região, passando a conhecer as localidades das batalhas e refúgios, além de ser genro de um dos maiores amigos de Lampião, Teotônio Alves China, o China do Poço (aquele mesmo em cuja residência houve o célebre encontro entre a cruz e a espada, entre Padre Arthur Passos e Virgulino), eis que Alcino foi juntando os retalhos cangaceiros e de repente já estava transcrevendo considerações acerca dessa inigualável saga nordestina.
De dedo a dedo, começou a teclar a história. E em páginas e mais páginas iam surgindo suas versões sobre o cangaço. Digo versões porque contrapontos aos muitos relatos oficializados pelos livros, porém não aceitos como verdadeiros por ele. Juntando os fatos, confrontando as provas, passou a não aceitar que verdadeiros absurdos históricos continuassem sob o manto da veracidade. E o primeiro aspecto a indagar foi acerca da morte de Lampião na Gruta do Angico, naquela madrugada de 28 de julho de 1938.
Segundo Alcino, aquela história deveria ser recontada diante da possibilidade de a Chacina de Angico não ter acontecido da forma como é tão considerada pelos livros e disseminada pela maioria dos estudiosos. E começou a ampliar seu debate. Contudo, inicialmente não tinha qualquer pretensão de publicar aquilo que considerava apenas como acanhados escritos de um matuto cavando as profundezas da história.
Ciente de suas limitações, tanto como pesquisador quanto escritor, vez que se achava possuidor de uma escrita estreitada demais, sem qualquer primor de grafia, incorrendo em constantes erros gramaticais, escrevia mais para si mesmo do que para lançar seus escritos ao debate público. Mas também por não acreditar muito que o seu trabalho pudesse alcançar qualquer importância perante o meio especializado no tema.
Mas vaidoso como sempre foi, buscando qualquer comentário positivo sobre seus rascunhos, e nisto o encorajamento para seguir adiante, de repente começou a mostrar a pesquisadores e outros interessados partes daquilo que cuidadosamente elaborava. Alguns, vendo a qualidade das pesquisas e a pujança dos relatos, tentaram mesmo usurpar, transcrevendo como seus, importantes conteúdos daquela nascente obra. E isto porque, inocentemente, confiando demais, emprestava a qualquer um seus originais.
Certa feita, já tendo publicado outros livros sobre o cangaço e um sobre a música caipira, e começando a ter o merecido reconhecimento perante o meio acadêmico e pesquisadores, Alcino recebeu uma proposta das mais aviltantes para uma pessoa de sua honradez, algo totalmente indecente na vida de um sertanejo. Eis que alguém bastante influente, amigo seu desde outros tempos, e cujo nome prefiro não citar, propôs que ele emprestasse um livro inédito para que fosse publicado como tendo sido escrito por aquela pessoa.
Outra pessoa bastante influente da intelectualidade sergipana, escritor renomado, simplesmente copiou trechos inteiros de um livro inédito que estava em suas mãos para apreciação. E depois desavergonhadamente publicou. Mas nem só em meio a esse joio, a ervas daninhas, convive Alcino.
“O Caipira de Poço Redondo”, como gosta de acentuar nos seus artigos, fez e faz grandes amigos e, tendo a muitos como verdadeiros irmãos, a estes confia seus escritos com prazer e máxima certeza que o retorno será o melhor possível. Entrega seus originais a tais amigos e na maioria das vezes pede uma revisão, uma análise, uma introdução ou um prefácio. E sempre é inteligentemente recompensado.
Contudo, muito tempo se passou desde os primeiros esboços até a possibilidade de transformar em livro aqueles registros. Somente quando nas suas andanças sertanejas, nas suas incansáveis pesquisas de campo, a professora e historiadora Luitgarde de Oliveira Cavalcanti Barros se debruçou sobre aquelas páginas é que os relatos de Alcino começaram a ter o devido e abalizado reconhecimento. No prefácio do livro “Lampião Além da Versão – Mentiras e Mistérios de Angico”, a historiadora assim expõe:
“Alcino, como já aconteceu com outros escritores, tangido por uma preocupação de fidedignidade aos fatos narrados cria espontaneamente, sem os paradigmas da produção científica, uma descrição pormenorizada do ambiente, dentro do contexto local, objeto de sua narrativa, dos fatos que apresenta. Partindo de Poço redondo, refletindo a angústia de seu povo sem recursos e de poucos estudos, falando sobre o vazio de alternativas econômicas de sua população mais pobre, o que ele faz na verdade é uma Etnologia do sertão nordestino”.
E prossegue a ilustre pesquisadora:
“Mas o belo de seu trabalho, ressaltado o valor documental que apresenta, é o lirismo, a emoção que serve de teia no encadeamento da narrativa. Aí, na norma da expressão, no mote, na plangência do canto de suas reminiscências, este livro é poesia pura, narrativa literária que prende o leitor até a última linha de sua prosa poética. Sem qualquer conhecimento de Teoria Literária, atinge em muitos capítulos o ritmo e a marcação do teatro grego, no estímulo enxuto, na dramaticidade despida de palavrórios adjetivados [...]”.
Após tecer outras importantes considerações, cita:
“É a produção intelectual de um homem que só tem formação institucional de curso primário, feita com muito sentimento e maestria, um grito vindo da profundidade da caatinga mais recôndita, como o frescor da água fria do facheiro para o andante sedento. Ele não tivera medo que eu me apropriasse de suas melhores idéias, de alguns dos excelentes trechos de seu livro”.
Assim, a professora Luitgarde Cavalcanti proporcionou a Alcino o incentivo que tanto precisava para se situar no meio literário do mundo cangaceiro. Mas não apenas o cangaço enquanto conceito de luta sertaneja entre o bandoleiro e a volante, mas na visualização de um contexto maior que, necessariamente, implica em desbravar a realidade de então para encontrar as injustiças sociais, as explorações, as perseguições, os latifúndios, as práticas coronelistas, os conchavos e desmandos do poder, enfim, o meio gestando os mais sangrentos conflitos.
Depois de lançado o primeiro livro, “Lampião Além da Versão”, em 1996, obtendo grande receptividade entre os estudiosos e a população, Alcino tomou ânimo e daí em diante passou a dar um norteamento totalmente diferente à sua vida. Optou por transformar o seu lado político, de forte liderança local, em mero acompanhamento das novas forças surgidas, e enveredou de vez pelo lado da cultura e da história regional.
Desde então passou a se voltar para duas vertentes diferentes, mas num mesmo sentido: a valorização da música caipira, procurando mostrar sua riqueza através do programa “Sertão, Viola e Amor”, que manteve durante muitos anos na Rádio Xingó FM, em Canindé do São Francisco, cidade vizinha a Poço Redondo, até ser acometido por um AVC em julho deste ano, bem como aumentar e aprimorar suas composições musicais, pois também exímio letrista cuja poesia sertaneja já foi gravada por Clemilda, Dino Franco e Amaraí, Dino Franco e Fandangueiro e Osano e Ozanilton, dentre outros.
E na outra vertente a continuidade de suas pesquisas e escritos não só sobre a saga cangaceira como pela formação histórica da região sertaneja sergipana, cujo olhar aprofundado frutificou dois belos livros: “Canindé do São Francisco – Seu Povo e Sua História” e “Poço Redondo – A Saga de Um Povo”. Sobre o cangaço não só continuou escrevendo como também participando de palestras, seminários e outros eventos. Tornou-se famoso, reconhecido. Contudo, o mesmo humilde, o mesmo sertanejo, o mesmo caipira de Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo.
Continua...
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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