Rangel Alves da Costa*
Desde muito tempo, talvez anos a fio, que não dialogo com meu espelho. Confesso o distanciamento do bom e verdadeiro amigo, a distância do nosso relacionamento, ainda que todos os dias o encontre por três ou mais vezes.
O tempo passa, os anos somam em cima de mim, surgem as transformações. Mesmo sem espelho teria a certeza das rugas, dos fios brancos surgindo nos cabelos, do sorriso deixando de ser espontâneo, das marcas próprias dos passos da idade. Sendo assim, então por que fugiria do diálogo com o espelho?
Talvez não estivesse fugindo, talvez apenas evitando ouvir na palavra refletida as muitas verdades que medrosamente procuro não admitir. Conhecendo-o muito bem, tenho a certeza que não falsearia qualquer realidade apenas para me agradar. E admito que nunca esteja preparado para ouvir que estou diferente daquilo que penso estar.
No diálogo anterior, e repita-se que há muito tempo, lembro bem que ele acompanhava o meu semblante, e com o olhar que também era o meu, afirmou sorrindo que infelizmente muito mudaria nos anos seguintes. E disse-me que até certa idade é como se nada modificasse, tudo parecesse com vivacidade, até que o sol do tempo começasse a nublar.
Mas o que me impressionou naquele momento foi quando disse que quanto mais eu me espelhasse para refletir as diferenças surgidas mais as transformações se tornariam imperceptíveis. Desse modo, bastava apenas o olhar sem a reflexão mais séria para que mais tarde, quando precisasse saber como realmente estava de semblante, surgissem as indesejáveis surpresas, os descontentamentos pelas transformações.
Jurei que não mais passaria muito tempo sem me espelhar para refletir minhas verdades. Contudo, os dias passando, o tempo correndo, e eu negligenciando, sendo omisso com a promessa feita. Apenas chegava diante dele, me olhava rapidamente, fingia saber como estava, e saía para o enfrentamento da vida.
E todas as transformações surgidas na face, no olhar, no cabelo, no sorriso, não foram fruto apenas do tempo, mas também, e principalmente, dos muitos e tantos mais enfrentamentos da vida. Verdade é que tenho de andar, correr, pular, me jogar, arremessar, colher, buscar, fazer de um tudo para sobreviver. E com os anos passando o corpo vai também refletindo o cansaço da luta.
Mas hoje mais cedo resolvi dar um basta nesse distanciamento do espelho. Era ainda cedinho e diante dele não tencionava me barbear, escovar os dentes ou pentear os cabelos, mas apenas enfrentá-lo num diálogo franco, sem pressa, sem rodeios. E cheguei adiante para encontrá-lo com a sua indispensável mania: olhava-me com os meus olhos, colocava diante de mim o meu rosto, fazia todos os gestos que eu fazia.
E não duvidei. Era realmente o meu espelho e aquele espelhado era eu. Amedrontado, sem saber o que dizer ou fazer, permaneci por muito tempo quieto, calado, quase desistindo de levar adiante o tão necessário diálogo. Mas antes de tomar coragem e puxar conversa, tive o cuidado de me olhar com a profundidade como há muito não fazia. E sem perceber, o diálogo começou aí, nesse exato momento.
Espantado, abri a boca para dizer como eu estava mudado, como as rugas começavam a dar os primeiros sinais, como o meu olhar havia perdido aquela vivacidade, como o seu brilho se fazia distante, como os cabelos tomavam outra cor, como o sorriso estava apagado, como o outro eu, o eu jovial, alegre cheio de contentamento, havia sumido.
Permaneci mais de dez minutos me olhando sem acreditar nas tantas transformações. Levantei a cabeça, respirei profundamente, e disse a mim mesmo – e para o silencioso espelho ouvir -, que dali em diante não havia outra coisa a fazer senão me cuidar mais e melhor para que outras surpresas iguais aquela não acontecessem mais.
E foi então que ouvi a voz do espelho, e que falava com voz igualzinha a minha, dizendo que o homem não pode fugir de sua realidade. O que está espelhado não é o momento, não é a feição, mas as forças existentes dentro de cada um.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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