SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 3 de outubro de 2012

MARIA, JOSÉ E OS SEUS TRÊS FILHOS (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


A riqueza maior da vida era a família: Maria, José e os seus três filhos. Maria José, a mocinha; José Maria, o mais velho; e João, o mais novo. E riqueza maior porque não havia outra de jeito nenhum.
Casa de taipa em pedaço de chão; cama de vara, tamborete de assento; moringa na janela, panela vazia; malhada e quintal, galinheiro vazio; dois quartos, sala e cozinha; banheiro nos matos, cachorro deitado. E um pouquinho mais que isso.
Uma fome, uma sede, uma terra esturricada, uma lama no tanque, um mandacaru entristecido, um umbuzeiro desnudo, um preá escondido, um papagaio repetindo a dor e a agonia: vem gente aí!
Mas nunca chegava ninguém. Mesmo sabendo da papagaiado do bicho, mentiroso fino que só gente de nome, a velha mãe lançava o olhar triste, profundo, magro e sem brilho, em direção à curva da estrada.
Não era nova, mas também não era tão velha assim. Mais de setenta anos por cima de quem não passa dos sessenta já diz do sofrimento na mulher. Pano enrolado na cabeça, vestido velho de chita sempre abaixo do joelho, chinelo furado de dedo. Vestimenta de sempre, do dia e da noite de todos os dias.
E ele, o pai José, com seu eterno chapéu retorcido, a sua roupa remendada, a sua mão calejada em direção à enxada. Tirava o instrumento de trabalho do canto e saía pro meio do tempo pra arrancar erva daninha debaixo do sol fervente.
Uma mãe, um pai, mas cadê os filhos? Cadê Maria José, a mocinha; José Maria, o mais velho; e João, o mais novo? De certo, se os três continuassem ali a casinha não ia dar conta de acomodar. Só continuava Maria José, os outros não.
E Maria José só continuava porque pessoa desvalida da vida não tem direito nem de sonhar em sair de casa, conhecer outro lugar. Vivia dia e noite na janela do quarto conversando sozinha, acenando pra passarinho, sorrindo sem ter de que. E também com um choro tão triste que quando começava virava a noite.
Nasceu amalucadinha e sem um pingo de juízo continuava a linda mocinha. Os pais tudo faziam para animá-la, para tirá-la daquele quarto escurecido, para fazê-la passear pelos arredores, e até conhecer a cidade. Mas nunca quis. E sempre respondia que sua boneca de pano não podia ficar sozinha. Mas nem boneca de pano possuía a mocinha.
José Maria, o mais velho, nome que homenageava tanto o pai como a mãe, arribou com treze anos de casa e nunca mais voltou. Numa seca medonha, subiu num pau de arara pra cortar cana numa região distante e desse dia em diante só dá notícia em mal traçadas linhas.
“Mãe, se tiver viva mim espere. Diga a pai que num morra inté eu chegá aí. Maninha já tá mió da cabeça? Adonde anda João? Pode mim espará que vorto, cum fé em Deus”. Mas já fazia mais de dois anos que não escrevia. E o maior temor dos pais era esse.
João também estava distante. Num dia que apareceu um circo de pouca lona na cidade, inventou que queria ser atirador de faca. Os pais só faltaram se acabar de tristeza quando souberam de tal história.
Mas o danado do menino soube enganar como ninguém. Deixou o circo pegar a estrada, arrumou os panos de bunda e não amanheceu mais na tapera. A última notícia que os seus tiveram dava conta que havia se amigado com a rumbeira e ganhava a vida soltando fogo pela boca.
Com os filhos homens pelo mundo, só restavam mesmo os velhos e a amalucadinha. E também o cachorro magro, a desolação, a estiagem de espantar poeira, a pobreza se alastrando por dentro de casa e chegando ao pé da barriga, mostrando os ossos.
E ainda por cima o safado do papagaio dia e noite repetindo, parecendo com a única intenção de martirizar a velha mãe, dizendo sempre que vinha gente adiante. Mas um dia ele falou a verdade. Estava na janela e gritou: vem gente ali!
Quase tomada de cegueira, já velha demais para apressar o passo, mas ouvindo um barulho de gente chegando, ela tateou até a porta para perguntar quem estava ali. Sou eu, mãe, José Maria, seu filho. Cadê pai, cadê maninha?
Ela não respondeu. Mas o papagaio sim: Voltou tarde demais. Ou cedo demais para a solidão. A família agora é só você. E eu, se quiser que eu conte uma história de ingratidão.

  
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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