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sábado, 6 de outubro de 2012

O RITUAL DA VIDA NA MORTE (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Cada cultura possui ritual próprio de despedida de um falecido. Do pesar ao velório, e depois do sepultamento ao luto, tudo se manifesta de forma diferenciada segundo as concepções acerca da morte, bem como as tradições, os costumes e os rituais próprios de cada povo.
Existem sociedades que apenas pranteiam seus mortos, dedicam-lhes momentos de despedida e em seguida promovem o sepultamento. O luto, quando ainda há, deixou de ser uma manifestação exterior nas roupas escuras, para se tornar numa aflição íntima. Noutras sociedades, o morto é festejado e, em alguns casos, conservado por muito tempo ao lado dos seus.
Não caberia aqui tecer detalhes sobre uma infinidade de rituais existentes nem acerca das contradições que se apresentam perante os olhares das outras culturas. São questões antropológicas que só podem ser compreendidas e explicadas considerando-se os conceitos próprios de cada cultura em torno do pensamento e da ação diante da morte.
Contudo, o que importa aqui é relatar um ritual especial, colhido numa sociedade distante, ainda considerada primitiva perante as acepções da modernidade, e essencialmente conservadora com tudo que diga respeito à suas tradições e costumes, preceitos observados e seguidos de geração a geração.
Nesta sociedade, que aqui será chamada apenas de povo estranho, a morte nada mais é do que uma doação do corpo aos que ainda continuam vivos; o velório é o momento para repartir os restos mortais entre alguns escolhidos; e o sepultamento é basicamente a degustação das partes recebidas do morto. Nada, porém, de ritual antropofágico ou canibal, já que houve um falecimento natural.
Senão as cinzas dos ossos já utilizados à exaustão, nada do defunto serve como elemento de despedida ritual. A não ser a própria cerimônia de desfazimento completo do corpo. Assim, ao invés de ser preparado o cadáver para ser enterrado, ali mesmo na residência familiar do falecido tem início o rito de divisão dos restos mortais entre as famílias que estão passando maiores necessidades naquele momento.
Como numa triagem, o líder procura saber quais famílias estão mais famintas, não conseguem colher os frutos escassos do campo, e filhos menores e idosos já não têm mais alimento suficiente. Estas pessoas serão escolhidas para receber sua quota do corpo morto. E ao saberem que serão agraciados com uma perna estraçalhada ou um braço quebrado, começam a louvar e proferir cantorias até o momento que o mais velho é chamado para ir buscar o alimento tão essencial para todos.
As famílias que serão contempladas com pedaços do morto ficam acampadas nos arredores da casa, geralmente ao relento debaixo de árvores. De lá ecoam os cantos de agradecimentos, os louvores que mais parecem grunhidos fúnebres. Os olhos brilham, as bocas desdentadas se abrem alegremente, as mãos são erguidas aos céus. No meio deles se avista uma panela. Nela o pedaço do defunto será cozido para saciar, ao menos por um dia, a terrível fome.
Quando à porta uma mão se ergue em aceno, apontando numa direção, logo se vê alguém levantar e ir correndo com a panela à mão. Antes de ultrapassar a porta se joga ao chão como agradecimento protocolar e ao levantar é levado ao interior da moradia. Ali, com o corpo já sem várias partes estendido numa mesa, chega um parente do morto e pergunta quantas crianças e quantos velhos existem na família.
Se apenas duas crianças e um velho, por exemplo, então o parente resolve na hora, e diante do que ainda resta, qual o membro que será cortado e colocado na panela. Cada perna é dividida em dois pedaços; a coxa em três, e assim por diante. Mas a parte que mais gostam de receber é, sem dúvida a cabeça. Quando o parente corta a cabeça e coloca na panela, então gritos de prazer e satisfação são ecoados pelos arredores.
Assim que a pessoa é chamada para receber o seu quinhão da morte, os outros da família já começam a acender a fogueira esperando a comida chegar, o pedaço de carne morta. Ao retornar, decidem ali mesmo se vão colocar apenas água na panela para o cozido ou espetar em pedaços para assar. Seja cozido ou assado, o alimento é consumido tão gulosamente que mais parece a melhor das frituras.
Ao estranho certamente que seria repugnante, nojento, asqueroso, inaceitável, mas a verdade é que enchem as mãos da carne morta cozida e vão levando à boca restos de olhos, pedaços de dedos, costelas, unhas, pedaços cabeludos, ossos pequenos ou grandes. Comem e se lambem, e se lambuzam de tal forma que um óleo logo começa a escorrer pelos cantos da boca e vai descendo pelo peito.
A única exigência feita pela família do morto é que todos os ossos, do menor ao maior, sejam devolvidos depois de chupados, avidamente sugados. Recolhidos, são colocados num cesto de palha para secar durante sete sóis. Em seguida são incinerados e jogados da colina mais alta, no momento de vento maior, para sumir entre os ares, indo ao encontro dos deuses.

  
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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