Rangel Alves da Costa*
A casa era pobre. A casa era tão pobre que mal tinha parede, mal tinha móveis, mal tinha comida, mal tinha chão, mal tinha gente. E quase não tinha gente mesmo porque ali somente um morador.
Além do morador, um velho artesão já sem ofício nenhum na vida, havia também um cachorro magro e um papagaio pelado. Mas ficava puto da vida se lhe fizessem essa observação. Pelado é o seu futuro, e dizia meio mundo de enraivecimentos. E todos cabeludos.
Mas o velho o chamava pelado pra cá e pelado pra lá e o danado até parecia contente. Não adiantava arreliar com o gentil amigo, o homem tem pouco com quem conversar e não era bom machucar um bondoso coração tão solitário. Dizia a si mesmo o louro pelado.
Contudo, se existia uma coisa que o papagaio não suportava mesmo era ver que seu amigo e dono sempre dava mais atenção a outras coisas que a ele. Por isso mesmo jurou a si mesmo nunca abrir a boca pra falar com aquelas amizades do velho. Ao menos enquanto ele estivesse por perto.
Também não adiantava querer dizer nada ou esculhambar com as amigas que viviam espalhadas pela casa. Mais de duzentas bonecas, ainda inteiras ou aos pedaços, de pano velho ou mais novo, de plástico e porcelana, por cima de tudo que fosse lugar. A cama de vara era cheia, embaixo da cama também, pelo chão, por cima da mesa, e até perto da porta de entrada.
Solteiro a vida toda, nunca pensou em casar. Morou com uma e com outra, mas sempre era abandonado por causa de sua mania: colecionar bonecas. Artesão da madeira, quando tinha tempo esculpia boneca no lenho; quando lhe sobrava um dinheirinho, corria pra feira pra comprar uma ou duas bonecas; caminhava pelos monturos procurando as velhas e abandonadas bonecas.
Essa mania já vinha de muito tempo, desde que rapazote ainda perdeu pai e mãe. Um dia, remexendo num velho baú familiar encontrou aquela que seria o início de tudo. Ali estava - não sabia bem desde quando - uma graciosa boneca de pano. Gordinha, rechonchudinha, com cabelo de lã negra desfiada, olhos de semente de negrume ainda brilhoso, uma boca alinhavada no vermelho e dois chumaços róseos nas bochechas.
Já tinha ouvido sua mãe falar sobre ela, mas tão misteriosamente e com palavras recortadas que nunca deu muita atenção. Mas aos poucos foi relembrando os dizeres e, juntando pedaços, encontrou o significado de tudo: A boneca havia sido feita para uma irmã que não durou nem dois anos na vida. Se estivesse viva seria mais velha do que ele três anos. E daí em diante passou a ter amor pela de pano e linha como se fosse à própria irmã.
Vendo na boneca a verdadeira irmã, se entristecia toda vez que tinha de deixá-la sozinha. Então lhe veio a ideia de arranjar outra boneca para fazer companhia. Mas depois pensou e pensou e chegou à conclusão que deveria ser muito enfadonho apenas aquelas duas bonecas conversando o tempo todo. E trouxe mais uma, depois mais outra, e aos poucos foi enchendo a casa.
Porém, muitos do lugar não compreendiam aquela situação, o porquê de um homem ser tão apegado a bonecas a ponto de só querer viver cercado delas. Ademais, logo diziam que nenhuma mulher ficava muito tempo com ele porque sua preferência era brincar de boneca. E sendo assim não podia ser homem, de jeito nenhum. Um velho amulezado, florzinha, um aviadado. Era o que mais diziam.
Quando tais conversas chegavam aos seus ouvidos, ao invés de xingar, de responder, de achar ruim, ele simplesmente dizia que era muito feliz com suas amizades. E depois sentava para tentar ajeitar a perna de uma, pentear o cabelo de outra, mudá-las de posição. E o papagaio ficava só olhando de banda, compreendendo tudo, porém enciumado. Mas só quando o velho estava ali, pois na sua ausência não parava um só instante de fofocar e pilheriar.
As bonecas espalhadas pelo casebre, por todo lugar, e a velha boneca, aquela primeira deixada por sua mãe, sentada numa pequena cadeira de balanço obra de sua arte. E de vez em quando sentava ao lado para perguntar como estava se sentindo, se queria que trouxesse outras amigas, se queria que fizesse alguma coisa para se sentir melhor.
Boneca, ela nunca respondia. Mas um dia falou. E como se soubesse que um dia esse instante chegaria, ele apenas sorriu e se aproximou para escutar. E ouviu: Um dia quero me tornar um crisântemo para te acompanhar, meu irmão!
Poeta e cronista
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