SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 18 de outubro de 2012

RITUAL DE AMORIMORTE (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


À meia-noite o sino deu três badaladas e meia. Não sei por que dobrar três vezes e apenas a metade de outra vez, nem como essa quebra pôde ser sentida. Mas a verdade é que foi assim. Tinha de ser assim. Do contrário estaria quebrado o rito inicial no grande templo da sacerdotisa.
Abrindo-se a porta larga de mais de mil anos, segue-se por um corredor escurecido, com aspecto misteriosamente sombrio, iluminado por duas pequenas e trêmulas chamas de velas. Ao final, o olhar se abre para um imenso salão, não menos sombrio, porém mais iluminado por candelabros. Tudo muito velho, antigo, na poeira dos anos.
Ao centro, uma mesa de madeira rústica com mais de dois mil anos, porém ainda intacta por estar recoberta pelo verniz suado dos tempos. Bem no meio da mesa ovalada um alguidar de barro com três folhas ainda verdejantes, tendo ao fundo uma espécie de areia fina e aromática. Ao redor da vasilha de barro queimavam quatro varetas de incenso: sândalo, benjoim, eucalipto, raiz de lágrima.
De repente a escuridão se fez completa. Dois minutos após o sino dobrou por três vezes e passos começaram a ser ouvidos. Das portas laterais surgiram quatro virgens vestais trazendo cada uma um archote, tochas embebidas em resina, servindo as quatro chamas para dar uma iluminação especialmente grandiosa ao ambiente.
Outra virgem entrou no salão trazendo uma espécie de bacia grande, reluzente, certamente banhada a ouro, e a colocou cuidadosamente ao lado da mesa, em cima de um baú de mármore enegrecido. Feito isso, bateu levemente uma mão na outra e entrou no salão uma mulher de formosura só comparável às deusas, de traços tão perfeitos que eram. Era a sacerdotisa.
Coberta com véus brancos esvoaçantes, feitos de tecidos que pareciam de brisa, ainda que completamente vestida avistava-se sua pele brilhando sobre o corpo, suas curvas, seu sexo desnudo. Num sinal, e a virgem serviçal tirou-lhe todas as vestes. E completamente nua, sinalizou para que se retirasse e começou a entoar uma canção muito triste.
Cantava sua triste melodia, movendo apenas os lábios para o delirante ecoar de sua cantiga de amorimorte. Mesmo ao longe se percebia que seus olhos lacrimejavam, que chorava um pranto muito dolorido. De vez em quando, e fazia apenas isto, voltava seu rosto para a bacia, momento em que lágrimas cintilantes eram avistadas se derramando.
Quando parou de cantar fez um gesto com a mão e a virgem retornou. Agora trazia ao seu lado o mais belo dos jovens já nascido nas terras d’álém. Estava entristecido, cabisbaixo, andando lentamente, mas quando levantou o rosto para olhar nos olhos da mulher, as virgens vestais sufocaram gritos, quiseram correr em sua direção para abraçá-lo e ali mesmo possuí-lo com desmedida volúpia.
Refreadas pelo olhar repreensivo da sacerdotisa, baixaram a cabeça para o lacrimejar escondido, sufocado, apaixonado. Em seguida, a bela e nua mulher mandou que sua serva vestal deixasse o belo rapaz sem um fio de pano sobre o seu corpo. Nu, disse ela, e tão belo quanto o espelho do corpo. E a virgem, de olhos fechados para não ser tentada, arrancou-lhe todas as roupas.
De costas, assim que ouviu da serva que já tinha feito o trabalho, que o rapaz estava completamente desnudo, ao virar-se quis se atirar sobre ele, tomá-lo como seu homem, naquele momento e para a eternidade. Porém sabia que não podia. Ao menos não naquele momento. Então mandou que a vestal se retirasse e saiu por instantes do imenso salão. Sabia que o encontraria ali quando retornasse.
De cima da mais alta das torres, completamente nua, e falando o mais alto que podia, ainda que nenhuma palavra dita saísse do seu próprio âmago, ela anunciou para que o vento recolhesse e espalhasse aos quatro cantos sombrios:
“Eis o rito do amor e da morte. A paixão não correspondida se transforma em vingança, em insaciável busca de mortificar para o renascimento. E os deuses anunciaram, e os deuses não negam, e assim deverá ser. O oráculo cantou a pedra e da voz da sacerdotisa veio a sentença: o amor não correspondido é vida que deve morrer para renascer. E todas as forças ocultas irão velar aquele formoso corpo e prepará-lo com as três folhas: do retorno, do amor e da paixão. Assim foi dito, e assim será”.
E enquanto retornava trovões agitaram os céus. Um raio caiu em sua mão e se transformou numa espada flamejante. E ao entrar no salão avistou seu amor ainda mais belo, mais formoso, mais apaixonante. Porém feito estátua, mudo, imóvel. Somente quando ela, não suportando, mais correu para abraçá-lo, ele agitou os braços impedindo a aproximação.
E foi neste momento que ela ergueu a espada e com golpe certeiro decepou-lhe a cabeça, fazendo-a cair precisamente dentro da grande bacia dourada. Espantada, amedrontada, porém sabendo que assim mesmo tinha de acontecer, recolheu as três folhas do alguidar e jogou-as na bacia. Depois, em pé ao lado, começou a chorar.
Eram tantas as lágrimas, jorrando continuamente, que quando um raio de sol surgiu numa fresta a bacia já transbordava. E ela incessantemente, cada vez mais triste a chorar. E as águas foram além do salão, desceram os montes, formaram um rio. E até hoje a pedra grande do rio chora seu amor impossível.
E chorará para sempre, esperando o impossível retorno. Não sabendo, porém, que ele deságua amorosamente no mar da mais bela ninfa, a divindade amorosa das águas.

  
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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