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quarta-feira, 17 de outubro de 2012

NO LEITO DO MEU PEQUENO RIO (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Diminutivo de rio é riacho, ribeiro, pequeno rio. Acho bonito dizer riachinho. Caminho cavado na terra, estrada das águas que viajam assim que as tempestades gotejam abruptas nas suas nascentes e fazem a cobra encharcada correr sinuosa pelos matos e ribanceiras.
E o Jacaré, curso d’água, que por possuir no seu leito poços redondos para matar a sede de animais em épocas de estiagens, um dia deu nome ao município de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo, terno leito onde nasci, pode ser visto como tudo isso: o rio do município, o riacho afluente, a ribeira cortando quintais e roçados dos moradores de suas margens. E riachinho, além disso...
Afluente da margem direita do São Francisco, totalmente seco na maioria das estações, o Jacaré é um pequeno rio, um riacho de águas intermitentes, costumeira e carinhosamente chamado riachinho. Descendo da Serra da Guia, próximo a divisa entre Bahia e Sergipe, o tímido ribeiro vai abrindo suas veias para correr seus 73,5km de comprimento até desaguar no Velho Chico.
Assim que avista o rio, logo avança sedento, de boca aberta, cansado da longa viagem alimentado apenas por areais, garranchos, tocos de paus, pedras e todo tipo de sujeira que os habitantes de suas margens vão jogando no seu leito. Quando chove forte na cabeceira e as águas irrompem velozes, apressadas, as marcas da degradação são avistadas acompanhando as águas, boiando imundas, seguindo adiante.
Mas ouve um tempo que o riachinho servia pra tudo sem ser tão degradado, consumido até na sua mata ciliar. O sertanejo tirava o proveito que podia do seu riachinho, explorava-o comercialmente, utilizava principalmente de suas margens para uma infinidade de coisas e situações, porém de modo respeitoso e responsável perante a natureza.
Logicamente que havia degradação, deterioração de suas potencialidades, mas sem causar problemas de maior gravidade. Daí que durante todo um percurso histórico o riacho Jacaré continuou o mesmo, na sua largura, nas suas pedras, nos seus poços, nos seus lugares mais perigosos em épocas de enchentes, e também na sua sede e na intensa agonia em épocas de estiagens mais prolongadas.
Desde o início da povoação da região que se descobriu a adequação do barro contido nos barrancos e arredores para a produção artesanal de tijolos, telhas, utensílios domésticos. Assim, pequenas olarias sempre existiram ao longo de suas margens. Contudo, o barro visguento removido das ribanceiras e as cacimbas abertas para a retirada da água para o preparo da massa jamais causaram impactos de monta.
Somente com o progresso, com o crescimento da cidade e o aumento e a necessidade de novas construções, foi que a utilização desenfreada da areia molhada do leito apenas úmido, bem como das pedras que faziam contenção e davam um curso normal às enchentes, começou a causar danos ambientais sem precedentes.
Escavacado, perdendo seu leito natural, de repente o riachinho já estava largo demais, porém sem o areal de antes nem as pedreiras que davam força e retenção às enchentes. Um rio nu, largo, porém magro, ossudo, passou então a ressentir-se de um problema maior ainda, que era o desaparecimento da mata ciliar, das encostas, dos barrancos. Agora apenas um rio seco, de curso livre, porém quase irreconhecível.
Irreconhecível porque o riacho antigo, o rio pequeno e amado por todos, há muito que desapareceu. Aos poucos as pedras das lavadeiras acabaram sumindo, implodidas que foram para se tornar pedra miúda de construção; os poços onde os artesãos do couro deixavam ali seus instrumentos de molho por dias seguidos desapareceram; as grandes cacimbas deixaram de existir; as árvores portentosas que existiam no meio do leito foram cortadas ou morreram por tantas consequências destrutivas.
Para que serve o riachinho Jacaré agora, senão para ser saudade, para servir de história do que não mais existe, para servir de passeio no seu leito triste e feio. Ou para que suas margens se transformem apenas em chiqueiros malcheirosos de porcos e criatórios para outros bichos. Ou para chegar engolindo tudo, trazendo o que encontrar pela frente, em épocas de cheias grandes.
Quando menino, e até rapazote, esperava a terceira enchente seguida, e quando as águas já estavam claras, limpas, passava o dia inteiro pulando de pedra a outra, tomando sol nas suas beiradas e numa banhação sem parar. Depois do anoitecer, de casa ouvia meu pequeno rio cantando, chamando para o seu leito, para a sua correnteza, para a sua vida.
E o que fizeram do meu rio, meu Deus? Atiro uma pedra marcada de cima da ponte e já não posso pular para ir procurá-la lá nas funduras. Meu rio está estranho, desconhecido, um amigo que de vez em quando passa diante de mim e nem cumprimenta mais. Apenas agoniza no seu leito de tristeza e aflição.
  

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com   

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