SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 10 de outubro de 2012

PALAVRAS SILENCIOSAS - 39


Rangel Alves da Costa*


“Voltando ao banho de chuva...”.
“Sim. Na infância era um ritual inesquecível...”.
“Para as meninas nem tanto...”.
“Logicamente que o conservadorismo dos pais impunha regras...”.
“Não diria nem regras, mas rédeas...”.
“Se ousassem sair lá fora tinha de ser de vestido...”.
“O que não era de todo ruim...”.
“Se os pais deixassem...”.
“O problema era esse...”.
“Quantas vezes correu pelas ruas com a chuvarada caindo por cima?”.
“Como eu gostaria de ter muitas recordações...”.
“Ficava nas rédeas?”.
“Nem sempre, mas me banhei menos do que desejava...”.
“Nem conto as vezes que desci ladeira, virei esquina, rolei pelo lamaçal, me refiz nas águas poderosas...”.
“Sempre nu?”.
“Geralmente nu...”.
“Que sensação maravilhosa...”.
“Era um tempo diferente de agora, com cada criança podendo verdadeiramente viver sua idade...”.
“Não há nem comparação...”.
“Para se ter uma ideia, nem precisava estar chovendo para o molecote andar sem roupa pelas ruas...”.
“Meus irmãos também faziam assim...”.
“Naquela época, até os sete, oito anos, menino andava nu mesmo...”.
“E o mais impressionante é que ninguém se importava...”.
“Era um tipo de ritual da inocência, da idade, coisa que não existe mais...”.
“Os olhos dos adultos não eram tão maldosos...”.
“Nem as crianças pensavam diferente de serem apenas crianças vivendo o seu momento mágico...”.
“Mas não deixava de ser estranho...”.
“Aos olhos de hoje sim...”.
“Estranho e bonito, um jeito diferente de viver a infância...”.
“Já imaginou, um monte de meninos pelados correndo pelas ruas...”.
“Pulando, brincando, apostando corrida, jogando água um no outro...”.
“Tudo com pingolim de fora, num frio danado...”.
“Eu olhava o mundo lá fora pela fresta da janela...”.
“E vendo a meninada nua...”.
“Mas como você disse, era algo tão normal que não fazia qualquer diferença...”.
“Mas vocês de repente sumiam...”.
“Todo mundo saía em correria pra beirada do riachinho...”.
“Mas não pra tomar banho...”.
“Não. A intenção era ver uma maravilha acontecer...”.
“O que?”.
“As águas novas chegando...”.
“O riacho já começando a encher...”.
“Se lá embaixo, na cabeceira, estivesse chovendo forte, não demorava e a gente começava logo a ouvir um barulho diferente...”.
“As águas novas chegando...”.
“Sim, mas as primeiras águas que passavam eram da própria chuva do lugar...”.
“Que nunca acumulava muita água...”.
“Só quando as águas da cabeceira começavam a despontar. Então era uma festa...”.
“Umas duas vezes fui até lá com meu pai...”.
“Então você percebeu a força da enchente...”.
“Sim. Era um barulho terrível, e por cima das águas um monte de pau, garrancho, lixo...”.
“Porque as águas vinham trazendo tudo que encontravam pela frente, toda sujeira que encontrava...”.
“E mesmo assim não trazia tudo...”.
“Só no dia seguinte, quando outras águas chegavam limpando o leito...”.
“E então o riachinho já ficava pronto para o banho...”.
“Então começava outra festa...”.
“A festa das águas...”.
“O dia inteiro no riachinho, ora tomando banho ora caçando passarinho pelas beiradas...”.
“E a felicidade em tudo...”.
“E que felicidade meu Deus!”.

  
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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