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segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

AOS POETAS VIVOS


Rangel Alves da Costa*


Enquanto expressão artística que mais reflete os sentimentos – e destes se supre como essência e seiva -, a poesia vem sendo vitimada pelos sofrimentos do mundo e pelas insensibilidades humanas. Não há poesia que ao invés de cantar os sentimentos do homem, de expressar as grandezas do ser e transformar em voz os sentimentos da alma, não venha se desencantando com os passos da humanidade e com o que ela se mostra capaz de fazer.
Triste seria somente uma poesia da dor se alastrando, do sangue inocente derramado em enxurradas, da violência exacerbada se tornando normalidade contínua. Infeliz da poesia que tem de beber no cálice do sofrimento, que tem que se iluminar pela escuridão da insensatez, tem que se comprazer com a iniquidade humana. Uma pena domada para a escrita do amor, da ternura e da grandeza da vida, não pode se contentar diante de versos que surgem avermelhados, sangrando, gritando, sofrendo. Eis que o poeta não está imune às dores do mundo. O poeta é humano, também sente e sofre, lamenta e clama, e não há verso que surja flor com a mente afligida por espinhos.
Porque, diante das realidades concretas, a poesia não pode viver somente de idílios nem se expressar apenas como cantos sublimes, devendo haver um comprometimento do poeta com o mundo além do imaginário simbólico, então nas entrelinhas das estrofes surgirá a seguinte indagação: transmudar os versos, e onde houver amor colocar dor, onde houver renascimento colocar sofrimento, onde houver sorte colocar morte? Ou simplesmente não rimar, deixando o verso branco enegrecido e de braços abertos esperando o fim? Uma poesia viva, pulsante, amorosamente clamando, de repente forçada a se voltar para o homem e seu estágio de barbárie. Não sei se o mundo atual, diante dessa realidade de ferro e fogo, seria lugar para um poeta que se omite em ser humano e pretende continuar no idílio, no sonho, na fantasia.
Não há críticas, apenas reconhecimento. As possibilidades surgidas com a poesia, onde o artista constrói realidades a partir de sentimentos ou torna o inexistente como algo possível de ser conhecido e apreciado, parecem ameaçadas demais com um mundo que procura exterminar o romantismo, a sensibilidade, o sonho poético. Perante a crueldade do mundo atual, poetas românticos como Shakespeare, Neruda, Florbela Espanca, Vinícius, só para citar alguns, ou mesmo do denominado romantismo sombrio, como Poe, Byron, Baudelaire e Álvares de Azevedo, teriam que falsear aos corações ou fechar as janelas se quisessem criar suas alegorias sentimentais. Dizimadas estariam aquelas folhas de relva aconchegantes ao entardecer na poesia de Whitman.
Fernando Pessoa, que sempre foi poeta de pé no chão, realista até onde expressava singeleza, certamente ficaria desassossegado com a vivência atual. Sua obra, contudo, não deixa de ser profética, um reconhecimento da solidão humana, da angústia interiorizada em cada ser, da desesperança nos caminhos do homem e da humanidade. Aquele homem descrito por Pessoa, tão nostálgico e solitário, valendo-se de suas próprias forças para não sucumbir, parece ser o mesmo homem abismado e impotente que hoje caminha por aí, temendo por tudo que acontece ao redor. É o homem desse mundo, o ser solitário e desesperançado de qualquer futuro alentador.
O fragmento a seguir, da poesia “A Tempestade”, de Lord Byron, poeta irlandês do século dezenove, já revelava a frustração do poeta frente ao desencanto do mundo: Se pudesse encarnar e tirar agora do meu seio aquilo que nele é mais profundo, se pudesse cingir com palavras estes meus pensamentos, e assim exprimir alma, coração, e espírito, paixões e todos os sentimentos, ah, tudo o que poderia desejar, e desejo, sofro, conheço e sinto, sem que morra, numa só palavra - e que essa palavra fosse “Relâmpago!” – eu a diria; mas não, vivo e morro voltando para o silêncio apenas, com sufocadas vozes que guardo como uma espada…
Carlos Drummond de Andrade, nosso poeta maior, igualmente revelou sua angústia no poema “Consolo na praia”, que é uma cética reflexão existencial, mas que também propõe a continuidade da esperança: Vamos, não chores… A infância está perdida. A mocidade está perdida. Mas a vida não se perdeu. O primeiro amor passou. O segundo amor passou. O terceiro amor passou. Mas o coração continua. Perdeste o melhor amigo. Não tentaste qualquer viagem. Não possuis casa, navio, terra. Mas tens um cão. Algumas palavras duras, em voz mansa, te golpearam. Nunca, nunca cicatrizam. Mas, e o humour? A injustiça não se resolve. À sombra do mundo errado murmuraste um protesto tímido. Mas virão outros. Tudo somado, devias precipitar-se – de vez – nas águas. Estás nu na areia, no vento… Dorme, meu filho.
Quem dera um canto novo. Não uma fuga, mas um canto poético que fosse capaz de desafiar a guerra através do verso, que fosse capaz de mostrar aos bárbaros, covardes, assassinos e genocidas da humanidade, que eles não são absolutamente nada. E nada são porque eles passarão, enquanto a poesia permanecerá como flor que sempre encontra uma primavera.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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