SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 1 de fevereiro de 2015

MÚSICA E MOMENTO


Rangel Alves da Costa*


Quando se fala em música há de se dizer, em primeiro lugar, que nem toda barulheira saída de uma mala de carro pode ser considerada como expressão musical. Nada além de ritmos desconexos, com melodias atabalhoadas e letras aviltantes. Quer dizer, não passa de uma barulheira insuportavelmente repetitiva.
Além dessa bagunça barulhenta de mala de carro, a música também é aviltada pelos duvidosos gostos de grande parte, senão maioria, da população. É a utilização de rótulo sertanejo para o que não passa de brega romântico, é a designação de música romântica para o que nada mais é que cornice sonora. Tudo parte de pessoas que certamente não conhecem nada de MPB nem de autêntico violado caipira. Expressões como ária, ópera, concerto, noturno e prelúdio, talvez sejam vistas como coisa do outro mundo.
Também não justifica dizer que gosto musical não se discute. Discute-se sim, e sempre tentando mostrar que inconcebível é que um jovem, na idade que pressupõe instante das escolhas da vida, se deixe seduzir e conduzir somente pelo que de pior chega às ruas com nome de música. A verdade é que é difícil compreender o que motiva alguém colocar sons potentes nos veículos e depois abrir a mala para impor seus desajustes sonoros perante os demais indivíduos.
Mas não é tarefa fácil delimitar o contexto próprio da música. Contudo, não é difícil compreender o que não seja música. A autêntica música não está em todo lugar nem sendo ouvida a qualquer altura. A boa música não está numa mala aberta de carro nem animando a rebeldia nas festas psicodélicas de fim de semana. A verdadeira música exige como uma preparação, um ritual de iniciação que vai desde a escolha ao local de fruição.
A verdadeira música deve, em primeiro lugar, provocar sensações prazerosas. A música deve proporcionar leveza à alma, perfumar o espírito, possibilitar viagens mentais, fazer bem aos ouvidos e coração de quem ouve. Através da música é possível reencontrar-se com situações vivenciadas, dar trilha sonora às saudades, encher-se de contentamento e prazer, ainda que a nostalgia também pontue como um laivo de terno entristecimento.
Tão importante é a boa música para a vida de um ser humano que deveria estar inserida dentre as necessidades orgânicas. Ora, se o sono repousa, fortalece e predispõe o indivíduo aos seus afazeres, se o alimento proporciona energia e força para os embates diários, então a música também deveria fazer parte desse elenco de urgências humanas. E simplesmente porque relaxa, emotiva, motiva, humaniza, sentimentaliza e torna o sujeito mais afeto à felicidade.
Uma imagem serve para exemplificar. Alguém retorna após a correria do dia, coloca de lado bolsas e roupas, abre a janela para a entrada da brisa do entardecer, vai até a estante e escolhe uma música para ouvir. Depois de colocada na vitrola, se joga entre almofadas para usufruir cada acorde, e de olhos fechados, sentindo a canção invadindo a alma, parece flutuar e sair de si. E levemente voa e mansamente vai ultrapassando os espaços até que a mente pouse numa doce recordação.
Ou lentamente caminha em direção à janela e lança o olhar na paisagem ao redor e mais adiante. Mesmo que nada disso exista à sua frente, certamente avistará um mar imenso, as ondas chegando e voltando, barcos ao longe, gaivotas fazendo suas trajetórias, coqueirais sendo balançados pelo vento suave. É como estar noutro mundo, noutra existência, onde o sublime se junta ao prazer de sentir o momento. E tudo possível somente pela trilha musical que lhe possibilita fazer tal viagem.
E tal viagem é acessível a todos. Ao menos àqueles que se distanciam das gritarias e barulhos do mundo lá fora e se recolhem para o instante do encontro consigo mesmo, no silêncio da sala ou dentro do quarto, perante uma música que valha a pena ser ouvida. Algo assim como um Noturno de Chopin, uma Valsa de Strauss ou um Balé de Tchaikovsky, ou apenas uma Sonata ao cair da noite.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: