SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 15 de fevereiro de 2015

RUAS NUAS


Rangel Alves da Costa*


Os passos seguem até a janela, as mãos repousam no umbral e os olhos passeiam adiante. A rua é a paisagem que se tem, é o que se encontra após as casas que foram erguidas desde muito tempo. E ao abrir a porta e seguir além, pisando na terra ou no asfalto, cada ser passa a fazer parte dessa mesma paisagem tão cheia de mesmices e novidades.
Aos poucos as pessoas vão surgindo, passando, caminhando, e tudo de modo tão frenético e apressado que quase ninguém mais recorda da calma daquela mesma rua noutros tempos ou após o anoitecer. Rua calma, singela, de todos se conhecendo, de todos convivendo naquele espaço misto de bucólico e encantador.
No passado, caminho de animais de carga, de carroças, de bichos pastando. Ao alvorecer o leiteiro batendo à porta, os vendedores de verduras, frutas e doces também. Casas que não precisavam de números para serem conhecidas, moradores que não precisavam de nomes para serem chamados. Bastava bater à porta. Ninguém jamais imaginaria que num futuro tão próximo tudo ali ganhasse outra feição.
As mudanças trouxeram desconhecidos, pessoas que apenas passam sem qualquer cumprimento, um bom dia ou boa tarde. Elas, as ruas, não são mais de seus moradores, ou os que ainda restem nas moradias entristecidas. Não há mais portas e janelas abertas nem amigos alongando a noite em proseados pelas esquinas ou calçadas. Tornou-se perigoso demais permanecer do lado de fora à mercê de visitantes inesperados e perigosos. Por isso mesmo que antes mesmo que a noite chegue as pessoas se recolhem amedrontadas.
Mesmo que tudo fique mais silencioso e triste após o recolhimento, é a partir daí que as ruas se tornam somente ruas novamente. De uma esquina a outra, pelo meio ou margeando pelas calçadas, apenas as vias em si mesmas, donas da lua e do vento, dos postes e dos chuviscos, dos pequenos animais que correm de canto a outro, e até dos notívagos errantes com seus destinos incertos. Assim, quando as portas e janelas são fechadas as ruas retomam seus destinos e chamam os mistérios da noite para o seu leito.
São os instantes das ruas envolvidas em si mesmas, abrindo espaços para a brisa e a ventania, para as canções sem voz que chegam mansamente, para o brilho da lua e o passeio das estrelas. Ruas silenciosas, apenas sussurrantes, calmas, com olhos abertos para tudo que possa surgir ao redor. São os instantes das ruas largas, imensas, ainda que estreitas e acanhadas.
As ruas se despem dos barulhos e multidões, das feições endurecidas e dos passos apressados, encontrando sua nudez e reencontrando-se em si mesmas. As ruas também silenciam, emudecem e se distanciam dos desvãos cotidianos para serem apenas caminhos solitários e sossegados. Despertam vivazes enquanto adormecem e se estendem inteiras nos seus próprios corpos.
É difícil perceber, mas em dias comuns, de correrias e caminhantes, as ruas são deprimidas, melancólicas, desassossegadas. Não vivem, não sentem, não sorriem, apenas suportam os que vêm e os que voltam, os que surgem e desaparecem pelas esquinas. Vendo-as assim, não passam de caminhos abertos ladeados por construções, por casas e prédios, e tendo por cima a dureza da pedra ou a sisudez do asfalto.
Mas as ruas não surgiram para serem apenas estradas e endereços, locais e fachadas, pois resguardam em si significados bem mais profundos. Eis que as ruas são a própria história, a moldura das mudanças, as marcas de progressos que por ali caminham. Também a feição de seu morador, dos amigos do entorno, de todos aqueles que acostumaram a gostar de caminhar pelas suas calçadas.
As ruas são também espelhos do tempo, do passado próximo e distante. Recorda-se de outros idos de casas muradas, com quintais, janelas e vizinhos em cumprimentos. Ruas com verdadeiros pomares, com árvores ornamentais nos jardins, com flamboyants nos canteiros e carteiros já conhecendo cada um dos moradores. Ruas sentimentais, humanas, com meninos brincando e pessoas sentadas pelas calçadas depois do entardecer e já debaixo da lua.
Já disse um poeta que as ruas são palavras silenciosas que ecoam nos passos de suas gerações. Suas distâncias, suas esquinas, suas vizinhanças, nada mais são que retratos que vão ganhando novas feições ao longo dos anos. E tristes aquelas ruas onde o progresso afastou seus habitantes para nelas erguer o cimento frio do desconhecido. Sem casas, sem pessoas, sem quintais ou janelas, nada mais restará senão espaços estranhos e desconhecidos.
Por isso que de vez em quando abro o portão ainda na madrugada e começo a apreciar a rua no seu silêncio, na sua paz e na sua grandiosidade. E sigo um pouco mais, vou para o meio do tempo e ali, no meio da rua, me torno um ser renovado ao redor da magia do instante, acariciado pelo suave chuvisco, abençoado pela aragem que sempre chega e pelo brilho da lua que sempre desce.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

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