Rangel Alves da Costa*
Os passos seguem até a janela, as mãos
repousam no umbral e os olhos passeiam adiante. A rua é a paisagem que se tem,
é o que se encontra após as casas que foram erguidas desde muito tempo. E ao
abrir a porta e seguir além, pisando na terra ou no asfalto, cada ser passa a
fazer parte dessa mesma paisagem tão cheia de mesmices e novidades.
Aos poucos as pessoas vão surgindo, passando,
caminhando, e tudo de modo tão frenético e apressado que quase ninguém mais
recorda da calma daquela mesma rua noutros tempos ou após o anoitecer. Rua
calma, singela, de todos se conhecendo, de todos convivendo naquele espaço
misto de bucólico e encantador.
No passado, caminho de animais de carga, de
carroças, de bichos pastando. Ao alvorecer o leiteiro batendo à porta, os
vendedores de verduras, frutas e doces também. Casas que não precisavam de
números para serem conhecidas, moradores que não precisavam de nomes para serem
chamados. Bastava bater à porta. Ninguém jamais imaginaria que num futuro tão
próximo tudo ali ganhasse outra feição.
As mudanças trouxeram desconhecidos, pessoas
que apenas passam sem qualquer cumprimento, um bom dia ou boa tarde. Elas, as
ruas, não são mais de seus moradores, ou os que ainda restem nas moradias
entristecidas. Não há mais portas e janelas abertas nem amigos alongando a
noite em proseados pelas esquinas ou calçadas. Tornou-se perigoso demais
permanecer do lado de fora à mercê de visitantes inesperados e perigosos. Por
isso mesmo que antes mesmo que a noite chegue as pessoas se recolhem
amedrontadas.
Mesmo que tudo fique mais silencioso e triste
após o recolhimento, é a partir daí que as ruas se tornam somente ruas
novamente. De uma esquina a outra, pelo meio ou margeando pelas calçadas,
apenas as vias em si mesmas, donas da lua e do vento, dos postes e dos chuviscos,
dos pequenos animais que correm de canto a outro, e até dos notívagos errantes
com seus destinos incertos. Assim, quando as portas e janelas são fechadas as
ruas retomam seus destinos e chamam os mistérios da noite para o seu leito.
São os instantes das ruas envolvidas em si
mesmas, abrindo espaços para a brisa e a ventania, para as canções sem voz que
chegam mansamente, para o brilho da lua e o passeio das estrelas. Ruas
silenciosas, apenas sussurrantes, calmas, com olhos abertos para tudo que possa
surgir ao redor. São os instantes das ruas largas, imensas, ainda que estreitas
e acanhadas.
As ruas se despem dos barulhos e multidões,
das feições endurecidas e dos passos apressados, encontrando sua nudez e
reencontrando-se em si mesmas. As ruas também silenciam, emudecem e se
distanciam dos desvãos cotidianos para serem apenas caminhos solitários e
sossegados. Despertam vivazes enquanto adormecem e se estendem inteiras nos seus
próprios corpos.
É difícil perceber, mas em dias comuns, de
correrias e caminhantes, as ruas são deprimidas, melancólicas, desassossegadas.
Não vivem, não sentem, não sorriem, apenas suportam os que vêm e os que voltam,
os que surgem e desaparecem pelas esquinas. Vendo-as assim, não passam de
caminhos abertos ladeados por construções, por casas e prédios, e tendo por
cima a dureza da pedra ou a sisudez do asfalto.
Mas as ruas não surgiram para serem apenas
estradas e endereços, locais e fachadas, pois resguardam em si significados bem
mais profundos. Eis que as ruas são a própria história, a moldura das mudanças,
as marcas de progressos que por ali caminham. Também a feição de seu morador,
dos amigos do entorno, de todos aqueles que acostumaram a gostar de caminhar
pelas suas calçadas.
As ruas são também espelhos do tempo, do
passado próximo e distante. Recorda-se de outros idos de casas muradas, com
quintais, janelas e vizinhos em cumprimentos. Ruas com verdadeiros pomares, com
árvores ornamentais nos jardins, com flamboyants nos canteiros e carteiros já
conhecendo cada um dos moradores. Ruas sentimentais, humanas, com meninos
brincando e pessoas sentadas pelas calçadas depois do entardecer e já debaixo
da lua.
Já disse um poeta que as ruas são palavras
silenciosas que ecoam nos passos de suas gerações. Suas distâncias, suas
esquinas, suas vizinhanças, nada mais são que retratos que vão ganhando novas
feições ao longo dos anos. E tristes aquelas ruas onde o progresso afastou seus
habitantes para nelas erguer o cimento frio do desconhecido. Sem casas, sem
pessoas, sem quintais ou janelas, nada mais restará senão espaços estranhos e
desconhecidos.
Por isso que de vez em quando abro o portão
ainda na madrugada e começo a apreciar a rua no seu silêncio, na sua paz e na
sua grandiosidade. E sigo um pouco mais, vou para o meio do tempo e ali, no
meio da rua, me torno um ser renovado ao redor da magia do instante, acariciado
pelo suave chuvisco, abençoado pela aragem que sempre chega e pelo brilho da
lua que sempre desce.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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