Rangel Alves da Costa*
O termo jaguncismo não possui mais a
ressonância de outrora. De vez em quando é utilizado no ataque a desafetos para
indicar que o inimigo comanda uma corja de matadores. Até ministro do Supremo
já acusou outro igualmente togado de manter viva a medonha tradição. Mas o
verdadeiro jaguncismo possui raízes muito mais aprofundadas.
A expressão logo remete a jagunço, pois neste
possui seu agente ativo, seu praticante, ainda que o mandante fosse também
criminoso. Mas a ideia que se tem hoje é apenas aproximada de outros idos. Não
raro se diz que jagunço é o violento, o matador, o assassino a sangue frio. No
contexto nordestino de antigamente, contudo, tal avesso de gente era muito
mais.
Gestado pelo coronelismo, pelo latifúndio e
pelo poder de mando, representava a ação violenta do patrão frente aos
desafetos e qualquer um que contrariasse seus interesses. Agindo sempre em
surdina, era a violência esperando ser chamada para agir. E agia com tamanha
sagacidade que nem rastro deixava.
A cobra silenciosamente esgueirada na estrada
e pronta para dar o bote, assim era o jagunço. O bicho faminto de sangue
esperando sua presa nas sombras dos escondidos, assim era o jagunço. A pedra
dura, imóvel e fria, que de repente irrompe faiscando fogo e devorando a vida,
assim era o jagunço.
Tem-se, assim, que jagunço era aquele
escolhido entre os deserdados da sorte para servir a uma vil e poderosa
liderança. Seu ofício não era outro senão proteger o patrão contra inimigos
igualmente poderosos e dar cabo de todos aqueles que representassem ameaça ou
interferissem nos planos de seu senhor.
O jaguncismo está neste contexto, num triste
período onde a morte era a sentença proferida contra quem se atrevesse a açular
a ira do poderoso. Este, para não sujar suas mãos ou não levantar suspeita
acerca de sua participação na derrubada de um ou de outro, ordenava o serviço
àquele que era pago para empreitada de sangue.
Empregado seu, sempre à sua disposição pelos
arredores do casarão, ou mesmo alguém de fora, especialmente contratado pela
relevância do serviço a ser realizado. Não raro que jagunço de um coronel era
contratado por outro para praticar traição. E assim tombava pelas mãos daquele
que imaginava seu submisso. Era a vingança pelo avesso.
Um mundo cruel, de violência exacerbada,
vinditas de sangue, traições, tiros e mortes. Um mundo do mandonismo, do
jaguncismo, do sangue espalhado na estrada. De um lado o poderoso e sua moeda,
de outro o matador e seu preço vil diante do valor de cada vida derrubada.
O jagunço era homem espinhento, rude,
desconfiado, inimigo da própria sombra. Não gostava e nem confiava em ninguém,
nem no patrão nem nos outros do mesmo ofício. Sabia que era um nada, um verme,
uma crueldade em pessoa que outra serventia não tinha senão a de tornar em
desgraça a vida alheia. E muitas vezes de inocentes.
Mas tinha que cumprir ordens, e sabia que tal
cumprimento não tinha nem nome nem face, apenas que era pessoa que não deveria
continuar vivendo. Daí que podia ser um poderoso coronel, um pobre sertanejo ou
mesmo outro jagunço. Era pago pra fazer e tinha de mostrar o resultado. Corria
risco de morte se descumprisse ou fizesse mal feito.
Erra, contudo, quem imaginar que o jaguncismo
se comprazia em ser apenas uma ordem para que um jagunço desse fim ao escolhido
pelo senhor mandante. Também não significava apenas sair para matar e voltar
com a prova do crime. Havia todo um procedimento que era devidamente observado,
sob pena de tudo dar errado.
O jagunço tinha de ser homem preparado,
destemido, insensível, com sangue frio e primorosa pontaria. Suas mãos sempre firmes,
certeiras, inflexíveis. Seu olho devia mirar e se fixar no objeto. A arma tinha
de possuir cano longo, comprido, de modo que somente sua boca alcançasse um
pouco além das folhagens.
Sua locomoção devia ser como a do bicho
astuto, sorrateiro, traiçoeiramente silencioso. Tinha de conhecer toda a
paisagem ao redor, bem como ter bom ouvido para sentir o passo da vítima ou o
trote de seu cavalo. Até a respiração devia ser comedida.
Seu local de atuação era no meio do mato,
atrás dos tufos, mas sempre próximo à beirada da estrada. Era aí que mansamente
chegava e preparava a tocaia, a emboscada. E tocaia nada mais é que a armadilha
preparada, a toca pronta para cuspir fogo, a cilada onde dificilmente alguém
ultrapassa com vida.
Dentro do mato, ou mesmo detrás de tronco largo,
o jagunço se preparava para o sangrento desfecho. Ele avista a estrada e quem
nela vem, mas a vítima sequer imagina que na mudez ao redor uma arma está sendo
apontada para sua testa. E de repente o disparo, o tiro certeiro, o corpo tombando.
Muito jagunço nem precisava dar mais que um
tiro. Bastava um. E dali mesmo voltava sem mágoa ou arrependimento,
tranquilamente caminhando pela mataria espinhenta, entre garranchos e
serpentes. Ele mesmo uma víbora peçonhenta que tanto vitimou os sertões.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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