Rangel Alves da Costa*
Depois de mais de quinze anos de convivência,
ela disse que ia embora e partiu. Tudo fiz para evitar a separação, mas não
houve jeito. O problema é que além de fazer a varredura na casa e levar tudo,
ela também levou o meu cálice sagrado e minha pedra filosofal.
A estima que eu tenho por estes dois objetos
é algo incomparável. Nem a história nem a arqueologia religiosa, nem a religião
ou o cristianismo, possui mais devoção que eu por aquelas duas relíquias. Desde
muito que chegaram a minhas mãos e cuidadosamente as mantinha com zelo e
adoração. E ela, por pura insensatez, junta tudo numa caixa e leva como se
fosse qualquer coisa.
Sim, eu mantinha em estantes, como relíquias
inseparáveis, uma pedra filosofal e um cálice sagrado. Que não se imagine,
contudo, que se tratam daquelas duas relíquias históricas que até hoje os
estudiosos se desdobram para comprovar suas existências. Não se imagine, pois,
que enveredei pelos caminhos do mundo antigo para encontrar tais preciosidades
ou que paguei com algumas moedas a algum ladrão barato escavador do passado.
Quem dera realmente ser o cálice sagrado
utilizado por Jesus na última ceia. E também há relatos que foi com o mesmo
cálice que José de Arimatéia recolheu sangue do corpo de Cristo após a
crucificação. Foi tendo tal cálice à mão que Jesus pronunciou: Tomai isso e
reparti entre vós; pois vos digo que não beberei doravante do fruto da videira,
até que venha o Reino de Deus (Lc, 22,17).
E tal objeto, algo como uma taça dourada e
cravejada de diamantes, tendo no seu interior os mistérios da fé, evidentemente
passou à história como possuidor de muitos poderes, miraculoso e arma
invencível nas mãos de quem o possuísse. Após a crucificação tal cálice teve um
longo percurso que envolve mistérios e muitas indagações. E acabou sumindo,
fato gerador de grandes controvérsias que ainda perduram.
E também quem dera ser a tão famosa pedra
filosofal daqueles tempos antigos de mitos e alquimias bruxuleantes. Ainda hoje
indescritível, a pedra filosofal sempre esteve envolvida em suposições.
Acredita-se que ela simboliza a eterna tentativa do homem de domar e transmudar
as forças humanas e da natureza. Depois de misturar elementos químicos e
naturais e proferir palavras mágicas, o alquimista encontraria um elemento
único que seria o poder de toda transformação.
Através dela o alquimista poderia transformar
qualquer metal em ouro do mais puro brilho e qualidade. E também utilizar para
produzir o elixir da longa vida, possibilitando ao homem a imortalidade. Mas
como o mito sempre esconde a verdade, até hoje ninguém jamais encontrou a
receita da alquimia para se chegar à pedra filosofal. A não ser com o lendário
Nicolas Flamel ou o outro Flamel da novela Fera Ferida, aquela mesma de
Tubiacanga.
Fato é que até os dias atuais não há consenso
sobre a existência e localização do cálice sagrado nem da pedra filosofal, e de
vez em quando uma notícia nova surge dando conta do encontro de algum vestígio.
Mas eu possuía comigo os dois preciosos objetos. Possuía porque em meio a
sapatos, pedaços de vida e quinquilharias, ela levou minhas relíquias ao
partir. Tão importante para mim quanto aqueles objetos antigos à história e à
religião, o que me foi levado deixou um profundo vazio.
Meu cálice sagrado ou Santo Graal era um
pequeno vaso todo trabalhado em madeira antiga de lei, artesanalmente ornado
com requinte e beleza e que, depois de envernizado em tom escurecido, realmente
parecia uma relíquia muito antiga. E eu a tinha assim, como um objeto valioso
saído dos tempos mais antigos. Colocado na estante ao lado de outros objetos
sacros, numa triste manhã nada mais avistei. Ao menos o meu Graal.
O mesmo aconteceu com minha pedra filosofal,
e esta levada de cima das páginas de uma Bíblia aberta em Salmos, mantida num
pequeno suporte numa estante do escritório. Apenas um cristal de rocha em tom
rosáceo, mas de beleza impressionante. Nela eu confiava a existência do poder
da transformação e do elixir da eternidade.
Mas nem o amor restou, sendo eterno até
apenas quanto durou, quanto mais o meu cálice e a minha pedra. E talvez seja
por isso que ninguém sabe o paradeiro certo dessas relíquias. E agora nem eu.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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