Rangel Alves da Costa*
Pisando em espinhos, lanhado por urtigas e
cansanção, assim João Bonome despontou na vereda. Não podia seguir por outro
atalho, por uma estrada aberta, pois se assim o fizesse seria avistado pelos
soldados da volante.
Na verdade, entrou na mataria calçado em roló,
com perneira até o calcanhar e roupa dura de enfrentar as durezas da lide. Mas
logo torceu o pé se desvencilhando das pedras e num repente parecia que não
cabia mais no sapato sertanejo. Teve de se desfazer do calçado e seguir pisando
por cima do que encontrasse pela frente.
Também a roupa foi logo pinicada pelas pontas
dos espinhos arbustivos. Já estava em frangalhos quando resolveu jogar o resto
da camisa fora e ficou somente de calça rasgada. Estava quase nu no meio do
mato, envolto em galhos cortantes, urtigas valentes e cansanções desatinadas.
A dor era tão forte, os lanhos pelo corpo
eram tantos e insuportáveis, que certamente desfaleceria se parasse à sombra de
qualquer pé de pau. Os espinhos deixavam os pés sangrando, as pernas sem
proteção se viam lanhadas pelos açoites pontiagudos, o restante do corpo fervilhava
pelo contato com as plantas urticantes.
Mas tinha de suportar muito mais. O sol
sertanejo parecia abrasado, a pela queimava como toucinho em fogueira. O calor
era tão forte que o corpo inteiro se derramava numa graxa líquida e
malcheirosa. Porém tinha de seguir, tinha de andar o mais depressa possível.
Muito dependia de seu esforço em alcançar o destino.
Seu nome, como dito acima, era João Bonome.
Um nome sertanejo acrescido do nome de uma árvore que simboliza a força nativa
do sertão. Um homem de puro destemor, aguerrido e valente. Não valentia de
matar, de ferir, de violar a vida alheia, mas na luta debaixo de tanto sol.
Mas por que João Bonome estava fazendo aquele
percurso com tanto sacrifício e sofrimento? Simplesmente para avisar a Lampião
e seu bando, arranchado numa coito da região, que a soldadesca perseguidora
estava pelos arredores e, portanto, no seu encalço.
Esse era um trabalho geralmente feito por
coiteiros, que eram as visões exteriores do cangaço. Um bom coiteiro não só
fornecia ao bando o que ele precisasse na sua estadia num coito de ribanceira
ou meio do mato, como servia de emissário e de informante acerca de tudo o que
estivesse acontecendo pelos arredores, principalmente sobre a presença da
volante.
E João Bonome não era coiteiro, sequer
conhecia ou mantinha amizade com qualquer cangaceiro, não tinha, pois, nenhuma
obrigação moral de manter o Capitão Lampião informado sobre o perigo que o
rondava. Mas por que ele se dispusera a tanto sacrifício para chegar a tempo ao
local do coito?
O ódio, apenas o ódio. Ou, somente para
acrescentar, uma desenfreada ojeriza e aversão, revolta e repugnância que
sentia pelos perseguidores de Lampião. Não que fosse a favor ou admirador do
cangaço, pois até temia suas repentinas investidas pelas povoações sertanejas,
mas não suportava mais ver tantas atrocidades praticadas pelos soldados.
Ele mesmo já tinha presenciado as
consequências da desmedida violência. Encontrou seu vizinho Berdué pendurado de
cabeça pra baixo numa baraúna, todo sangrando e sem um pedaço de língua sequer.
Nunca soube os reais motivos, pois o homem enlouqueceu daí em diante, mas
certamente porque não deu nenhuma informação sobre o paradeiro do Capitão. Era
sempre assim.
Quando a polícia volante despontava na
estrada o mundo parecia que ia acabar. Quem fosse encontrado tinha de cumprir
com uma dívida logo cobrada. Tinha que dar dinheiro, entregar pertences, ser
açoitado, e ainda assim sem certeza de continuar vivendo. Mas era pelos
arredores, nos casebres mais afastados, que a desumana volante buscava suas
vítimas de sangue. Dizer que nada sabia sobre o bando era pedir pra morrer.
Mentir era pedir pra ser trucidado.
Tudo isso foi revoltando cada vez mais João
Bonome. Então jurou a si mesmo que na primeira oportunidade iria dar o troco. Por
isso mesmo que quando soube da presença da soldadesca na região não pensou duas
vezes. Logo se meteu no meio do mato para alcançar o bando a tempo de o Capitão
preparar uma emboscada bem feita pra macacada.
Só havia um problema. Por ali não havia nem sombra
de Lampião e seu bando. Os cangaceiros estavam no oco do mundo, bem distante
dali. Mas a raiva do homem era tanta que se danou assim mesmo. Sangrando no
corpo inteiro, porém já insensível pela insanidade que logo lhe tomou o juízo,
apenas seguia pisando em espinhos, lanhado de cima abaixo.
E seguiu e seguiu, como um vulto
ensanguentado no meio do mato, avançando, correndo, caindo, levantando, sem
jamais se cansar. Mas tombou. E ao avistar os urubus se aproximando disse suas
últimas palavras: Seus covarde. Soldados não, vosmiceis parece urubu!
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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