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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 17 de março de 2015

Espírito e alma das ruas aracajuanas


Rangel Alves da Costa*


Diferentemente do que muitos imaginam, as ruas possuem feições, alma, espírito, sentimentos. Também guardam em si todo um enlaçamento orgânico e afetivo, toda uma magia que as tornam vivas e pulsantes. Por isso mesmo engana-se quem nelas avistar apenas casas, edificações, muros, asfalto, calçamento, pessoas que vão e que voltam. E que olhar sincero é o das ruas, que memória tão rica elas possuem.
Alguém já disse que a rua, nua em si mesma, apenas no seu jeito de ser tão próprio, é a poesia escrita no chão do lugar. Nela as rimas de uma natureza que foi sendo desbravada, as estrofes dos primeiros passos que ali chegaram, os versos antigos das primeiras moradias, o poema perfeito na coexistência familiar, o livro rico de velhas e novas gerações. Desse modo, as ruas se tornam além de caminhos para se afeiçoarem a vidas enraizadas.
No livro “A alma encantada das ruas”, o jornalista e escritor João do Rio, pseudônimo utilizado por João Paulo Emílio C. Ribeiro (1881-1921), um exímio cronista da vida carioca de antigamente, tece com maestria o desvendamento existencial, espiritual e sentimental que possuem as ruas. Segundo o cronista, estas são os retratos fiéis de seu tempo, de sua gente, de sua vida. Tudo acontece e pede passagem por cima de seu leito e suas esquinas. Aqueles relatos, como retratos em preto e branco, servem como analogia para a compreensão do espírito e da alma das ruas aracajuanas.
As ruas de Ará, como diz a música de Paulo Lobo, mesmo que em grande parte já tomadas pela voracidade e dureza do concreto e ferro, ainda não espantou de vez o bucolismo interiorano que ainda é uma das características da capital. O novo envidraçado e forjado no mármore e granito ainda não engoliu a arquitetura de ruas simples e suas residências singelas. Os esmeros nas construções mais antigas ainda estão preservados nos casarões construídos pela burguesia antiga no centro da capital, seguindo pelas margens do Rio Sergipe, na Rua da Frente, bem como nos arredores da atual Barão de Maruim.
A cidade nasceu a partir da Colina do Santo Antônio, porém só desceu a ladeira depois que o Engenheiro Pirro formatou o seu tabuleiro. A atual Av. João Ribeiro, que inicialmente se chamou Estrada Nova, passou a interligar aquele núcleo ao centro da capital. Mas lá em cima, nos arredores da Praça Siqueira de Menezes e da Igreja do Santo Antônio, ainda a existência de magníficos casarões com sua bela visão da cidade, rodeados de árvores frutíferas e numa ambientação ainda tão natural que nem recorda estarem tão próximos da voracidade do asfalto e do cimento.
Um pouco mais adiante, já na direção das águas circundantes da capital, pequenas e estreitas ruas que aos poucos vão tomando cheiro forte de maresia e de cais. Ao chegar a Av. General Calazans, onde se tem hoje a Orlinha do Bairro Industrial, a cidade vai sonolentamente despertando para o urbano desenfreado. E as muretas tantas vezes malcheirosas pelos esgotos lançados nas águas do Rio Sergipe, chegam aos mercados centrais e daí seguem pelas suntuosas avenidas até a costa praieira. São as vias do asfalto, do trânsito desenfreado, da imobilidade urbana.
Desde a região dos mercados Antônio Franco e Thales Ferraz, rumando ao centro pela José do Prado Franco e Ivo do Prado, que a Aracaju antiga continua viva na magistral arquitetura das imponentes edificações. A riqueza arquitetônica ainda está preservada em prédios como o da Associação Comercial, Palácio Serigy, antiga Alfândega e o conjunto de palácios públicos da Fausto Cardoso. A partir da região dos mercados, pela Rua da Frente, ainda são encontrados prédios majestosos de um tempo de fausto e de esmero arquitetônico. Mesmo as fachadas que hoje encobrem a maioria das lojas comerciais não conseguem esconder as feições do rico passado aracajuano.
Se no passado as ruas eram de habitantes de feições mais conservadoras, com muitos na usualidade de ternos de linho branco, chapéus e encontros em torno dos cafés famosos, atualmente a cidade se vê despojada de tais formalidades. As pessoas parecem não ter tempo senão de correr para sobreviver, cortando ruas e avenidas num apressamento contrastante com as facilidades modernas. Mas as ruas continuam simples, até humanas em muitos aspectos. As residências, porém, parecem amedrontadas e por isso mesmo sempre fechadas ou cercadas de muros. Muito diferente de uma Aracaju de portas e janelas abertas e cadeiras nas calçadas para os costumeiros proseados da vizinhança. E não faz muito tempo que era assim.
Pelos arredores das ruas antigas e familiares dos bairros Santo Antônio, Industrial e outros mais antigos, ainda se percebe um clima misto de passado e presente. Ainda há casas recuadas e edificadas quase rentes a quintais e pomares. As edificações novas não sobrepujaram a simplicidade das moradias. A Rua São João, por exemplo, por muito tempo viveu se resguardando para os festejos juninos. Ali uma gente de alma interiorana e prazerosa em receber amigos nas noites festeiras.
Há, assim, uma conjugação do novo e do antigo nas ruas de Aracaju. Ainda há o Beco dos Cocos, porém sem a vida noturna de outros tempos, e a Trav. Deusdeth Fontes e as suas lojas com feições de cinquenta anos ou mais. Um punhado de história na soma dos 160 anos da capital.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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