Rangel Alves da Costa*
Gosto de encontrar o velho amigo Cardosinho
porque ele tem sempre uma história melhor que a outra pra contar. E me conta
cada uma que até fico sem jeito, meio desconfiado, principalmente pela fama longamente
adquirida de não ser muito amigo da verdade. Não mente, apenas gosta de florear
o acontecido. Mas ouço prazerosamente assim mesmo, pois a cada causo sempre algo
interessante a ser rememorado ou forjado no pensamento.
Na verdade, a maestria no proseado de
Cardosinho está no baú antigo que vai reabrindo. Que seja num misto de
invencionice e acontecido, a verdade é que o homem tem uma memória de livro.
Foi dele que ouvi, por exemplo, o real motivo de dois desafetos coronéis
nordestinos voltarem atrás num acordo de paz compromissado com a governança
estadual: o governador chegou ao sertão com acordo escrito para ser assinado
pelos dois, mas nenhum sabia sequer rabiscar garrancho. E no mesmo instante a
guerra foi reaberta e a liderança maior tendo de fugir já sob chuvarada de bala
zunindo de todo lado.
De sua lavra é também o relato de como as
forças políticas de antigamente ganhavam eleições e se mantinham no poder.
Contou-me da fila de votação sob a vigília de capatazes armados até os dentes,
como forma de intimidar e fazer relembrar em quem deveriam votar. Mas nem
precisaria ser assim, pois a urna já batizada no meio da noite. Daí que sempre
com muito mais votos que o número de eleitores. E também do bilhete que foi
encontrado numa delas: Tonico, no meu querer o voto era seu, mas num tenho
querer.
E também acerca dos procedimentos
preparatórios para o favorecimento do candidato governista. Num tempo de
entrega de títulos às vésperas da eleição, dificilmente chegavam aqueles de
eleitores tendentes a votar na oposição. Quando chamado a se pronunciar sobre o
assunto, o juiz eleitoral sempre dizia que fosse reclamar com o papa. E o
próprio Tonico, candidato forte entre os desfavorecidos, até hoje procura seu
voto que desapareceu. Não teve nenhum na seção onde toda a sua família votou.
Mas a força prosista de Cardosinho estava
mesmo noutra história que sugestivamente chamava sentenças ao molho pardo. Um
interessantíssimo relato sobre o funcionamento da justiça nos tempos idos e o
que acontecia quando a lei vivia de braço dado com a política ou o poder local
interiorano. Num tempo onde os poderes se misturavam e era clara a influência
de um sobre outro, muitas decisões eram tomadas em respeito aos iguais e como
forma de manutenção do compadrio explícito: o juiz amigo e obediente ao líder
político, este oferecendo benesses àquele, o que acabava sempre em
favorecimentos exacerbados.
Segundo Cardosinho, muitos dos julgamentos
ocorriam sem que precisasse haver a ouvida das partes, de testemunhas ou
instrução do processo, nem que qualquer dos litigantes fosse chamado à presença
do magistrado. Noutros casos, quando o processo já tramitava normalmente, de
repente o juiz chamava o feito à ordem e imediatamente sentenciava. E tudo isso
por causa dos acertos e conchavos entre a lei e o mando local. Bastava que um
bilhete chegasse à mesa do julgador e o nome do litigante ali escrito logo
recebia sentença favorável.
Certa feita – esmiuçou Cardosinho – um
sujeito foi preso porque no seu cercado foi encontrado um animal levado na
calada da noite do terreno de outro. O caso foi levado ao juiz que, por sua
vez, deu imediato conhecimento ao prefeito. Precisava saber se era gente sua ou
de família opositora, de modo a sopesar os rigores da lei. Sabendo que era
protegido do amigo, logo decidiu não só expedir imediato alvará de soltura como
passar a propriedade do animal roubado para o próprio ladrão. E sob o argumento
de que se o indivíduo havia empreendido tanto esforço para levar às escondidas
um burro brabo até seu cercado é porque realmente estava precisando muito mais
dele que o antigo dono, que não mantinha o devido cuidado com o mesmo.
Cardosinho prosseguia dizendo que era uma
situação verdadeiramente absurda. Toda a justiça local era apadrinhada do poder
de curral, sob os auspícios do poder estadual. Desse modo, para a manutenção do
mando, do poder, da força política, a liderança situacionista local tinha no
judiciário uma das armas mais poderosas e eficientes. Ora, com a maioria do
povo temendo a justiça – ainda que a ela não devesse nada – e o mando local
agindo em conluio com o magistrado, então não havia como não se manter refém do
poder.
Digno de nota a descrição pormenorizada feita
por Cardosinho acerca das sentenças ao molho pardo. Segundo ele, quando a
pendenga judicial se mostrava como uma questão mais grave ou tendo por réu de
crime gravoso algum apadrinhado da liderança política, então o caso era logo
remetido às vias da gula e do brinde. O magistrado era convidado a compartilhar
uma suculenta galinha ao molho pardo e ali, na residência senhorial, entre
bebidas e gracejos, as conversas ao pé de ouvido acabavam em sentenças de
absolvição.
Para todos os efeitos morais e legais, o
processo prosseguiria, mas a justiça já havia sido brindada e saboreada
fartamente. Quanto mais a galinha de capoeira cheirava e o caldo se mostrava
suculento, mais as coisas iam sendo resolvidas com facilidade. E assim os
julgamentos ali mesmo, com sentenças ao molho pardo. Cardosinho dizia mais, mas
é melhor ficar por aqui. Também não precisa dizer tudo dos bastidores da lei e
do mando. A gula é grande, mas o cheiro não é nada bom.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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