*Rangel Alves da Costa
De repente me vi com uma vontade danada de
tomar banho de biqueira, assim como fazia nos meus tempos de meninice.
Amanheceu em chuvarada, chuva forte, batendo no telhado e descendo em deliciosa
e providencial cachoeira. Nem pensei duas vezes. Joguei as roupas de lado e caí
na molhação.
No meu tempo de menino sertanejo não deixava
passar uma chuvarada e logo corria para as calçadas em busca de biqueiras. A
meninada em festa pulava de canto a outro, enquanto alguns se danavam a correr
nus pelo meio das ruas, a se jogar de barriga pelas calçadas lisas ou
simplesmente se enlamear nas muitas poças que se formavam.
Também era costume depois descambar para os
lados do riachinho e de lá só sair quando chegava alguém avisando que a chinela
estava esquentando em casa. Mas as águas do riachinho só prestavam ao banho se há
dois ou três dias já tivesse chovido forte nas cabeceiras e as águas sujas já
tivessem dado lugar às águas novas. E também não havia a imundície e a
devastação que hoje se observa em todo o seu leito.
Desse modo, o banho de biqueira sintetiza não
só uma prática sertaneja como uma doce recordação da infância. Naqueles idos, quando
o telhado da maioria das casas descia um pouco além da parede da frente e
geralmente os moradores colocavam canos abertos ou calhas para conter as águas
de chuva, dos cantos descia um verdadeiro aguaceiro. Era ali que a meninada se
juntava para o banho festeiro.
Residências havia que a encanação era
interior e com uma abertura na própria parede da frente. Quando a chuvarada era
forte dali também jorrava a água tão desejada pela molecada no seu encantamento
sertanejo. Ora, era prazer de criança e maravilhamento diante de tanta água
escorrendo num sertão marcado pelas secas devastadoras. Talvez por isso mesmo,
pelo encantamento também envolvendo os pais, que os filhos podiam se esbaldar
debaixo da molhação.
Tempos bons estes de chuvaradas e biqueiras nos
idos do meu sertão. Não sei se as crianças de hoje ainda se deleitam com banhos
de biqueiras. Talvez apenas alguns, nas ruas mais afastadas, longe dos olhares
diferenciados de hoje em dia. Tomar banho nu e correr pelas ruas como veio ao
mundo nem pensar. Os tempos são outros e a nudez infantil já não é vista na
mesma perspectiva de antigamente. Sempre há uma maldade espreitando ao redor.
Hoje pude reviver um pouco desse passado. Não
só tomei banho de biqueira no quintal, como o fiz como se estivesse distante.
Esperei a chuva cair o suficiente para lavar o telhado e então me deixei molhar
sem pressa, sentindo no corpo um prazer antigo. Um prazer menino, um deleite de
quem não esqueceu o passado.
Só mesmo a chuva para salvar o banho nestes
dias de total ausência de água nas torneiras. O sol estava quente demais, o
calor insuportável, as pessoas evitando até sair de suas casas. A cidade está
mais vazia por causa disso. E se não fosse essa chuva do amanhecer, não sei
como seria o restante do dia sem sequer um balde d’água para enganar o corpo
sempre suado. Pelas informações repassadas, só mesmo a partir de amanhã que os
pingos voltarão. Mas água de verdade só mesmo ao final do mês.
Por isso que me agrada observar que o tempo
continua nublado. Se voltar a chover mais forte não vou nem pensar duas vezes
em procurar o chuveiro ao ar livre. Como me agrada ser novamente menino depois
de tantos anos. E como gostaria que o menino estivesse debaixo das biqueiras
das casas humildes do meu sertão.
Mas, enfim, a vida, o tempo. E essa outra
chuva que se forma na nuvem dos olhos. E essa outra chuva caída como enxurrada
de saudade, de nostalgia, de doce e cativante recordação.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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