*Rangel Alves da Costa
Ainda tem
gente que não desgarra de seu pedaço de chão de jeito nenhum, ainda que a
cidade chame a todo instante. Ama sua terra, ama seu pedacinho de chão, seu
cercado e seu jeito simples de viver e sobreviver.
Gente que
nasceu e cresceu e ainda vive e convive com a mesma feição sertaneja de
antigamente. Nada parece mudar. O tempo passa, tudo voa, muito se renova, mas o
viver sertanejo permanece desde o beiral da estrada de chão à cancela adiante.
Da cancela
adiante a porta e a janela, o batente largo, o silêncio das horas. Parece não
haver morador. Mas há. Logo sobe um cheiro vindo da cozinha, o som de uma
panela, uma voz qualquer. Oi de casa! Oi de fora, eis a resposta.
Assim
cheguei à casa de um já envelhecido sertanejo, um dos maiores caçadores já
nascidos naqueles carrascais sertanejos, pessoa de valor e nobreza reconhecidos
por todos. Um homem e seu mundo, ou aquele que a distância matuta à dureza
violenta do asfalto.
Moradia de
Seu João de Laura, no Riacho Largo de Nossa Senhora da Conceição de Poço
Redondo. Agora pergunto: Há cena mais singela e cativante que esta?
Um fogão
de lenha sobre um estrado de barro batido. Cinzas espalhadas pelo que restou da
lenha preparando comida.
Um
vasilhame enegrecido de tempo e cinzas em cima do beiral da boca. Pedaços de
telhas quebradas com a serventia de encobrir os restos da madeira e do carvão.
Uma lona
velha, de um azulado empoeirado, estendida ao lado para proteger da ventania e
da chuva, como se ali a chuvarada até se esquecesse de chegar.
E, bem
juntinho ao fogão adormecido, em cima da leveza das cinzas mortas, um galo sem
pressa de nada. Sonolento, descompromissado com qualquer cantar. Apenas ali,
apenas aí.
Mais
adiante uma meia-cerca de madeira velha, pedaços de paus levantados e arvoredos
emoldurando a vida. Restos, tocos, troncos, pedaços espalhados ali e acolá.
Dos braços
da madeira descem sacos, baldes, quinquilharias. Um saco que alguma serventia
já teve no passado. Certamente um feijão batido, um milho despigado, uma
alegria com qualquer colheita.
Uma planta
em caqueiro sem idade pende da madeira e desce num girau de quatro costados
tortos. Talvez assim, nesse mesmo jeito e na mesma feição, dia após dia.
O fogão de
barro nem sempre é usado, somente quando a panelada é de demora em cozinhar. No
barro do fogão a face da pedra. Até racha pelo fogo e pelo calor, mas nunca se
esbagaça.
Fogão de
barro e lenha para muita serventia. Um quarto de bode para muita visita, uma
feijoada pra família que chega, um cozido diferente para sair da rotina do
mesmo prato do dia após dia.
Abaixo de
tudo a terra, o chão sertanejo como lastro de tudo, os passos fincados desde os
tempos idos. Um chão entremeado de areia e pó, de terra e poeira, de aridez e
barro batido pelo passo do tempo.
Um chão
que um dia foi caminho de Lampião e seu bando. Uma terra abrindo passagem para
antigos caçadores, para vaqueiros e animais soltos e de cria, para os caminhos
sertões adentro e mais além.
Sertões
onde se espalhavam os umbuzeiros, as umburanas, as craibeiras, os marmeleiros,
as quixabeiras, as catingueiras muitas, os tufos de pau. Tudo num tempo de mata
e de floração ao longe.
Sertões do
nambu, do preá, da codorna, do caititu, do veado do mato, da seriema, da
rolinha fogo-pagô, até da onça e do bicho grande. Rastros apenas perdidos nos
idos, veredas de ninhadas e locas que já não existem mais.
Certo que muito
mudou e até a mata já escasseou. O bicho de caça sumiu de vez. A terra já não
produz como antigamente. O desmatamento aumentou o calor e trouxe o sol para fazer
moradia na varanda de cada um.
A
permanência na terra, contudo, é uma questão de amor sem igual. A obstinação
pela terra, pela casinha de barro ou de qualquer sustentação, é uma opção
amorosa para não deixar de acordar ainda na madrugada escurecida e adormecer
com a noite ainda menina.
Nunca há
riqueza de luxo, mas também em lugar nenhum é encontrada riqueza igual. O luxo
e o prazer da vida ainda na paz, o contentamento de estar sentindo a terra aos
pés e o bicho de cria roçando a mão. Um viver assim que Seu João de Laura
sequer sonha em desapartar.
E tem
gente que ainda diz que é casa de pobre. E tem gente que ainda olha pra tudo e
quase renega o olhar. E tem gente que não sabe o que é a vida. E tem gente que
não conhece o viver sertanejo. E tem gente que sequer reconhecer a grandeza -
em toda singeleza e simplicidade - desse mundo sertão.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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