*Rangel Alves da Costa
A cama desforrada de dias. Não havia pressa
nem qualquer prazer em dobrar os panos, ajeitar o travesseiro, deixar tudo
arrumado para a noite seguinte. Mesmo forrada, assim que deitava tudo parecia
em redemoinho. Virava-se de lado a outro, estendia o braço ao outro lado, mas
desde muito que ali já não deitava ninguém. Por fim, levantava o olhar em
direção ao telhado e começava a viajar por um mar sem fim. Somente nas ilusões
de ilhas e cais conseguia adormecer. Uma saudade fingida.
Levantava-se quase na madrugada. Caminhava
para a cozinha, colocava água na chaleira para fazer café, acendia o fogão e
depois abria a porta de trás, tendo o quintal adiante. De xícara à mão, dava
passos lentos pelos arredores, olhava para os espaços ainda de pouca luz e
então iniciava um ofício que trazia como compromisso desde que se viu em
viuvez. Ajeitava as plantas do canto do quintal, aguava, conversava com cada
ramo, cada folha e cada flor. Sempre pressentia estar sendo carinhosamente vigiado
por sua falecida esposa. E por isso mesmo repetia sempre o seu nome. Não raro
que suas lágrimas também caíam sobre as plantinhas.
Não forrava a cama todo dia, mas jamais se
esquecia de varrer a casa. Todo santo dia passava a vassoura de canto a outro.
E depois, de espanador à mão, afastava o pó acumulado pela ventania do dia
passado. Em dois instantes se demorava mais na sua limpeza. Ao chegar defronte
ao retrato da falecida na parede, ali parava em profunda reflexão. Olhava e
olhava, mirava e mirava, falava baixinho, para depois sacudir qualquer impureza
que na moldura estivesse, mas não sem antes levar a mão e, em gesto amoroso e
suave, tocar a face através do vidro. Era com se a sentisse afagando pela face
a sua mão.
Noutro momento, já perante a velha mesa da
sala, postava-se em frente ao antigo jarro com flores de plástico. Trazia o
jarro para perto de si e chegava a acariciar cada flor já sem cor. Carícia de
saudade, de dolorosa recordação, um devotamento tão singelo ao que um dia havia
sido ali colocado por sua amada. Lembrava-se que ela cuidava daquele jarro como
se fosse de um caqueiro florido, de flores vivas, colhidas em jardim. Tanto
cuidado ela tinha que de vez em quanto ele ouvia as flores de plástico sendo
chamadas por carinhosos nomes. Por fim, dizia: ela já não está, mas façam de
conta que suas mãos ainda zelam por este jardim tão perfumado na memória.
A porta da frente só era aberta depois de a
casa varrida. Mas tudo cedo demais ainda. O dia ainda amanhecia e o velho já
havia completado seus pequenos afazeres de toda manhã. Então abria a porta e
caminhava pelos arredores. E arredores tão solitários quanto a sua solidão.
Nada além que um descampado, um canteiro sem flores entregue ao outono, um
banco carcomido de madeira, amendoeiras que desciam folhas aos turbilhões, um
tempo de silêncio, apenas. Caminhava pelo canteiro, tocava os roseirais magros
pela estação, juntava gravetos e restos, reclamava da vida sem cor. Seguia
depois para o banco e ali ficava aguardando a chegada de qualquer passarinho ou
borboleta.
Aquele velho banco do amanhecer mais parecia
sua pedra de meditação. Ali sentava, ali pensava, ali voltava ao passado, ali
refletia sobre tudo. E por isso mesmo tanto entristecia. De repente seus olhos
amiudavam de tal modo que mais pareciam querer fechar. Ficavam apertados
demais, comovidos demais, entristecidos demais. Mas ao abri-los pressentia-se
perante uma estrada ainda a ser caminhada, uma vida ainda a ser vivida, mesmo
que o seu corpo e sua idade já estivessem na plenitude esmaecida dos outonos da
vida. Então dizia uma palavra qualquer, talvez que esperasse um pouco mais. Sabia
que sua amada estava sentada ao lado. Sua falecida esposa nunca saía de sua
presença.
Então levantava para retornar. Nada mais que
cinquenta metros entre o velho banco de jardim sem flores e a porta de casa,
mas ia caminhando tão lentamente que parecia nunca querer chegar. Por que a
pressa se dentro de casa apenas o silêncio e a solidão? Por que a pressa em
ficar sozinho e na presença daquela que não podia abraçar, acarinhar, e dizer
da saudade? Desejava mesmo dizer: Leva-me contigo, meu amor!
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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