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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 22 de outubro de 2012

ANGÚSTIA DE CAIS (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Sei que na literatura e na música é muito diferente da realidade, mas verdade é que me sinto completamente deslumbrado quando leio as descrições de Jorge Amado e Dorival Caymmi acerca das mulheres entristecidas esperando seus maridos na beira do cais.
Mas um arrebatamento remoendo os sentimentos, doendo por dentro, sentindo de perto aquelas situações, pois é difícil não enxergar na ficção o espelho das dolorosas realidades das tantas viúvas surgidas nas beiradas das águas. O cais, a beira do porto, a armação, o murmurejar das águas, a tristeza que tudo começa a rondar.
E eis que me ponho a vê-las caminhando de lado a outro, ora molhando os pés ora subindo na pedra, e tudo para ver se enxerga ao longe, já com as sombras da noite caindo, algum sinal do barquinho que saiu com seu pescador. E quanto mais o tempo passa mais aumenta a aflição, o desespero. Elas não querem assim, mas o pensamento só quer atinar o pior.
Homem do mar, de rio, das águas piscosas, ribeirinho, pescador, quem surja de onde surgir para colocar seu barquinho nas águas e seguir singrando, cortando os remansos e a correntezas, fugindo das pedras e panelas d’água, tentando escapar das forças misteriosas e arrebatadoras que existem nas profundezas molhadas. É esse homem, que no barco vai em busca do alimento e do meio de sobrevivência, que mais tarde, no outro dia talvez, vai causar tanto temor e aflição naquela que ficou na aldeia.
Esse pescador, homem experiente das águas, navegante de dias seguidos em busca do melhor cardume, profundo conhecedor dos perigos, das surpresas em cada canto, não deixa de ser também o sobrevivente das águas que fica entristecido todas as vezes que sobe na sua embarcação. E fica triste porque sabe o quanto é perigosa aquela vida, quantos perigos irá encontrar, as dificuldades que terá até retornar. Se conseguir.
Sabe muito bem que a calma das águas é espelho refletido só de um lado, pois tudo realmente acontece abaixo da lâmina, lá onde o olho humano não consegue enxergar. Conhece de si mesmo e de outras histórias que a calmaria já nas distâncias azuis não significa nada mais do que uma situação momentânea, pois a qualquer instante o horizonte pode escurecer, chegar uma tempestade, as águas se revoltarem e o barquinho ficar ao desvão. E pouco restará a fazer além de orar aos santos protetores dos pescadores.
Por saber que cada partida tem também uma feição de despedida, vez que cada retorno das águas é uma vitória maior do que os peixes apanhados, é que o pescador busca forças para se aproximar de sua esposa e dizer que não se preocupe nem fique triste que ainda naquela noite estará de regresso. Apenas por dizer, para procurar confortar, pois todos sabem que não é bem assim. Por isso mesmo tanto sofrimento a cada dia de seguir rumando em águas abertas.
Ele ajeita seu barco nas águas, tem o cuidado para colocar ali tudo que precisar, mas tudo faz para não olhar atrás, para avistar a mulher que está logo adiante de lenço à mão e uma dor terrível no coração. Com a voz embargada, o peito tomado de aflição, naquele dia ela vive um martírio ainda maior do que nas outras despedidas. Eis que não conseguiu fechar os olhos a noite inteira com alguma coisa querendo avisar que daquela vez seria muito difícil o seu retorno.
Logo ao amanhecer se entregou às orações, acendeu velas, pediu proteção aos santos, divindades e encantados; fez uma estrada de flores, espalhou loção pelos caminhos até as águas. Mas agora, vendo o barquinho partir, de olhos marejados e lenço molhado à mão, outra coisa não podia fazer senão esperar a embarcação se afastar para correr até a beirada e ali depositar um barquinho enfeitado para Iemanjá. A mãe e senhora das águas haveria de protegê-lo.
Entregou-se novamente às preces e orações, aos trabalhos e oferendas. O coração apertado exigia esse sincretismo, essa junção de religiosidades e forças protetoras. E de vez em quando olhava o relógio para ver se já se aproximava o tempo do retorno. E depois do entardecer, sentindo o sopro diferente do vento, correu até a porta e avistou a vastidão enegrecida no horizonte: tempestade descomunal!
Com a chuvarada caindo, a noite se fez de repente. Em pé na beira das águas não temia a ventania, os raios e trovões. E era no instante que o céu alumiava que ela tentava enxergar o barquinho voltando. Por amor estava ali, por tanto amor estava ali, mas sabia que o barquinho não voltaria, muito menos seu pescador.
E foi entrando nas águas. Cada vez mais seguindo rumo às profundezas enegrecidas. E quanto mais avançava mais gritava pelo seu homem, pelo seu pescador. Até que a voz foi sumindo, sumindo. E ela também. Realidade ou ficção, não sei. Só sei que assim acontece.
  

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com   

2 comentários:

Unknown disse...

e, as coisas não são tão simples, também ilusórias, do imaginário ao real ... muito bom estar aqui e poder apreciar sua obra Rangel,abraço

Sidney Ramos disse...

Obrigado Rangel por ter passado em meu blog, vim aquí beber com os olhos e respirar o ar tranqüilo das suas belas passagens e poesias.
Espero que volte também por lá.
Abraço