Rangel Alves da Costa*
Angustia-me dizer, mas os dias que tenho
vivido são de cimento e pedra. E também de asfalto, de ferro, de muros perante
o olhar e paredes encobrindo as paisagens e os horizontes. Verdadeiramente não
é mundo. E sim um misto de negrume e acinzentado que tenta petrificar a alma.
Nasci e me fiz menino noutro mundo, e bem
diferente desse que tenho agora. Sim, era um mundo no barro batido, na poeira
pelas ruas, nas pedras e espinhos pelos caminhos, mas tudo tão cativante como o
próprio berço. Eis que leito de nascimento e estrada que nunca se fez estranha
ao meu olhar.
Sim, era um mundo empobrecido, numa terra
distante, árida, com estiagens tão prolongadas que assustava o sol. Mas de lua
imensa, de noites românticas, de vozes passarinheiras, de sublimes paisagens,
mesmo quando acinzentadas pelas securas.
Um mundo de cheiro de café torrado se
espalhando pelas tardes, de cuscuz de milho ralado, de queijo de quintal e preparado
por mãos cuidadosas, e uma infinidade de iguarias apetitosas. O mungunzá, o
arroz doce, o bolo de milho e de macaxeira, a canjica e a coalhada.
Um mundo de quintais e descampados, de violas
caipiras e de sanfonas. Ainda ouço o boi berrando, vejo o velho vaqueiro
ajeitando a sela de seu alazão e pegando a estrada com aboio na garganta. E o
carro de boi gemendo sua sina, o jegue esquipando pelas veredas, a lavadeira
passando com sua trouxa na cabeça.
Manhãs de vizinhas varrendo as calçadas,
sertanejos se apressando para suas lides, meninos correndo para armar arapucas.
Tardes de cadeiras nas calçadas, senhoras dedilhando bilros com maestria,
velhos amigos proseando debaixo do pé de pau. E o vento quente de repente
amainando e trazendo aragem e folhagem.
E o menino correndo nu pelas ruas em dias de
chuvarada. A molecada se jogando das pedras do riachinho, uma verdadeira festa
no sertão molhado. Mas tudo parece ter mudado quando os pés descalços tiveram
de calçar chinelo de couro. E o pior foi ter suportar os espinhos na sola do
sapato nos caminhos da cidade grande.
Não só espinhos na sola dos sapatos como o
asfalto e as pedras queimando tudo. Por mais que os caminhos da cidade grande
pareçam lisos e fáceis de andar, não há pé de sertanejo que suporte tanta
estranheza. O espinho do sertão conhece o pé, o pé do sertanejo vence as pontas
afiadas sem nada sentir, mas basta colocar o pé no asfalto que tudo parece
insuportável.
Mas tudo pela cruel simbologia que o asfalto,
a pedra e o cimento da cidade grande representam. Eis que tudo frio, feio,
violento, ameaçador. Eis que tudo desconhecido, tudo brutal e arrogante, nada
como a simplicidade e a singeleza dos caminhos sertanejos. Há um contraste
absurdo nas pessoas, nos modos de tratamento, nos gestos arrogantes e nos
olhares intimidadores.
Por aqui as pessoas apenas se cruzam, se
batem e se estranham, enquanto lá sempre havia um bom dia, um boa tarde, um
como vai, uma constante aproximação com o amigo. Por aqui as portas e janelas
são fechadas assim que chega o anoitecer, enquanto por lá era o momento das
calçadas, das andanças de lado a outro, dos encontros pelas ruazinhas
escurecidas.
Não tenho culpa de estar aqui em meio ao
cimentado e outras durezas. Também não tive culpa quando me mostraram a estrada
e disseram para seguir adiante, pois seria a escolha entre a enxada e a caneta.
Mas tenho culpa por viver tão distante de tudo aquilo que tanto amo e que tanta
falta me faz.
O que me anima os dias e os tornam menos
dolorosos é a esperança de voltar para sempre. Não para viver na cidade, pois
também já tomada de todos os vícios e misérias da cidade grande. Mas no meio do
mato, bem perto do bicho, da lua e do sol. E com manhãs tão cativantes e
entardeceres tão sublimes que imagine estar no paraíso. E estarei.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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