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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 27 de maio de 2014

CACHAÇA DA TERRA, MODOS DE BEBER


Rangel Alves da Costa*


Já desde uns cinco anos que não tenho o imenso prazer de chegar num pé de balcão sertanejo e pedir uma cachacinha da boa, uma pinga com raiz de pau, uma aguardente preparada com mistura da terra. Disse imenso prazer porque não há nada mais prazeroso que derramar um pingo pro santo e depois deitar goela abaixo uma boa relepada de cana.
Contudo, bebedor que se preza gosta de ter na mão o quebra fogo da pinga. Daí que quando o vendeirim não coloca no balcão uma cuia com umbu, cajarana, pilombeta ou perna assada de preá, será preciso que o bebedor já chegue com seu acompanhamento. Por mais que a pinga desça a seco, verdade é que ninguém dispensa um sabor diferente para tirar a arripunação.
Em boteco de luxo o acompanhamento é na base do tira-gosto, sortido e a preço alto. Ali se pode escolher desde pratos com carnes variadas a camarões e lagostas. Costumeiros são os caldinhos de mariscos, de feijão com carne seca desfiada, ou as invenções que têm mais preço que sabor. Ora, basta abrir o cardápio e a carteira e tudo está resolvido. E com fartura.
Do mesmo modo, a cachaça desses botequins não se compara em nada com a verdadeira pinga de pé de balcão. Em primeiro lugar, porque é geralmente destilada, cheia de química e impurezas. Em segundo, porque não desce macia nem vem acompanhada - quando se deseja - da casca ou da raiz de pau, que não só dá sabor inconfundível e cheiro aromático, como possui serventia de remédio. Lógico, se bebida com moderação.
Dito isso, não há como se duvidar das qualidades da cachaça sertaneja. Acaso o cabra deseje tomar ela pura, e dependendo da confiança que tenha no vendeirim, certamente que estará desfrutando de uma aguardente de engenho, de feitura manual e do mesmo modo que era produzida desde séculos atrás. Daí seu perfume inconfundível, forte, estonteante. E gostoso demais.
Mas no botequim, através da alquimia bodegueira, a cachaça pura vai se transformando segundo a vegetação da região. Adentrando na mata de facão afiado, vão enchendo aiós e bornais das recolhas da umburana, quixabeira, angico, bonome, cedro e toda uma mataria. No preparo, há utilização das cascas, folhas ou raízes, bem como das lascas da madeira em si.
Dependendo da mistura, o mato ainda verdoso é pinicado e colocado na garrafa. Depois esta é bem lacrada e colocada embaixo do balcão e aí fica apurando de dois a três dias. Quando sai da toca para ser servida já está com coloração diferente, afogueada ou amarelada. Mas noutras ocasiões, é a folha, a raiz ou casca que primeiro tem de secar para depois ser misturada à branquinha. Muito vendeirim aproveita a casca seca e rala para utilizar o pó como mistura. De qualquer modo, sempre uma delícia autêntica e sem frescura.
Antigamente existia muito, mas hoje está cada está cada vez mais escasseando. Falo daqueles copos pequenos e convidativos que eram utilizados para servir cachaça no balcão. Encurtados, de fundo raso, já vinham com a marca do meio para o fundo. Quer dizer, a medida indicava a dose que devia ser servida.
Mas como tal medida sempre foi vista como irrelevante para uma gente com tanta sede, geralmente o sertanejo mandava passar o pau. Quer dizer, encher o copo. E bem cheio, eis que com a incumbência de ofertar um tiquinho ao danado do santo beberrão que vive de boca aberta no pé do balcão. E esperto também, eis que depois de beber se afasta rapidamente da cusparada.
Mas o que não pode faltar é o acompanhamento para depois da talagada. E vale de tudo, desde a fruta da estação, principalmente umbu e caju, ao pé de galinha afanado da panela. Quem chega do mato logo coloca a mão no bornal e puxa um achado da terra. E faz a festa entre a talagada e o mordiscar.
 Certa feita, um sertanejo amigo, lá da querida Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo, chegou ao pé de balcão com um umbu verdoso. Bebeu uma dose, beijou o umbu e ficou por ali assuntando. Verdade é que ficou completamente bêbado sem chegar ao caroço, se contentando em passar os beiços para sentir o sabor.
Ainda hoje é chamado de beijoqueiro de pé de balcão. Imagine um homem desses embaixo dum umbuzeiro. E tendo de lado um barril de cachaça da boa. Vixe Maria!


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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