Rangel Alves da Costa*
De vez em quando - e nos últimos tempos com
maior recorrência - a imprensa noticia fatos que são verdadeiras bestialidades
humanas. Quando ameaçado ou atacado, é instintivo que o homem se defenda e até
revide com violência. Contudo, não é próprio nem normal que aja com selvageria diante
de situações que apenas lhe revolta ou causa indignação. Ao partir para ações
de violência extremada logo demonstra um desvio comportamental que não é próprio
de sua natureza.
Desvio comportamental ou não, verdade é que o
instinto humano de defesa está ultrapassando os limites e o fazendo agir com
requinte de crueldade. Nem ao instinto animal pode ser comparada, vez que a
ação brutal deste obedece a regras de ataque e defesa, de situações que motivam
a ação violenta na intensa e difícil luta pela sobrevivência. Assim, o instinto
animal não é opcional, mas necessário. Muito diferente do que vem ocorrendo com
a reação instintiva de parte da população.
Não pode ser considerado instintivo, senão
como pura selvageria a covardia praticada por um grupo de moradores da cidade
de Guarujá, no litoral paulista no início desse mês. Ali, algumas pessoas
simplesmente resolveram fazer justiçamento contra uma mulher erroneamente
acusada de estar tramando o rapto de crianças para fins de magia negra. Seu
cerco e trucidamento sem a devida comprovação de culpa ou participação nos
fatos servem apenas como um dos exemplos da brutalidade que vive oculta no
homem.
Após a divulgação numa rede social de que uma
mulher poderia estar atraindo crianças para a prática de rituais macabros,
Fabiane Maria de Jesus, 33 anos, inocente, mãe de duas filhas, teve a
infelicidade de ser apontada como a responsável pelos atos e linchada por populares.
Apenas parecida com o retrato falado divulgado, ela caminhava em direção à sua
residência com uma Bíblia à mão, foi cercada e sumariamente atacada com
pontapés, paus e pedras, sofreu traumatismo e morreu no hospital. Contudo, não
é um caso isolado.
Muitos outros casos podem ser relembrados,
como os de supostos assaltantes amarrados em postes nas vias públicas. Apenas
de cuecas, um jovem foi amarrado a um poste de energia elétrica e chicoteado
por populares na cidade mineira de Ipatinga, em abril deste ano. Acusado de
fazer parte de uma quadrilha, no final de janeiro um adolescente de 15 anos foi
encontrado agredido a pauladas e acorrentado pelo pescoço também a um poste.
Tal fato ocorreu no Rio de Janeiro. E são inúmeras as notícias de ocorrências
assim, onde flagranteados ou acusados são alcançados pela população decidida
pelo justiçamento.
Aliás, o termo justiçamento está na pauta do
dia, nas atitudes da parcela da população que procura tornar hábito cotidiano o
fazer justiça com as próprias mãos e sem qualquer direito de defesa. Antiga
prática de tortura seguida de morte levada a efeito por pessoas que não tinham
autoridade para decidir acerca da extrema condenação, o justiçamento foi
ganhando novos contornos com a sensação de insegurança vivida pela sociedade.
Desse modo, aqueles alcançados pela população em situação de flagrante ou por
suspeita de alguma prática delituosa, se tornam alvo da ira dos revoltosos.
Geralmente sem procurar aprofundamento nos
fatos, buscar a certeza da acusação ou simplesmente porque ficou comprovada a
prática do delito, e diante da ausência dos agentes da segurança pública, a
turba raivosa decide sumariamente e parte para a ação. E daí em diante o
acusado passa a ser torturado, agredido de todas as formas e com as armas
encontradas pelas pessoas, num verdadeiro ritual de linchamento. Outras vezes,
como ocorreu com aqueles amarrados em postes, a intenção é apenas de ferir e
deixá-los imobilizados nas vias urbanas como recados sangrentos.
As imagens dos rapazes amarrados aos postes,
de roupas rasgadas, com os corpos lanhados e marcas de violência por todo
lugar, faz recordar outras imagens que ainda hoje causam revolta e indignação
nas pessoas. Quem não se recorda dos desenhos de Debret e outros artistas
retratando o açoitamento dos escravos presos aos troncos, naqueles tempos da
escravidão? Ora, as cenas de agora não são muito diferentes. E se as imagens
ainda são utilizadas pelos professores para ilustrar as atrocidades praticadas
contra os escravos, o que dizer agora diante das imagens retratando as mesmas
cenas no mundo novo?
Noutras partes do mundo onde o apedrejamento
de mulheres é até previsto em lei diante de determinadas condutas, as cenas
geralmente provocam grande repulsa no mundo ocidental dito civilizado. Logo classificam
como barbárie os castigos e clamam pelos direitos daquelas mulheres. Contudo, torna-se
contraditório demais que pratiquem o mesmo noutras situações e com outros
requintes de violência, e ainda pretendam ter como expressão de revolta social
tais bestialidades.
Verdadeiramente, nem mesmo os animais ditos
selvagens chegam a práticas tão extremadas. Em casos tais, a outra conclusão
não se chega senão a de que o estado mais brutal e selvagem do homem volta a
ser revelado em sua plenitude. E logo quando se acha plenamente civilizado.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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