SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 28 de maio de 2014

A NOITE E O DIA


Rangel Alves da Costa*


Anoitecer normal, noite com seu percurso de jantares ou arremedos, noticiários, novelas e proseados, até o passar das horas e chegar o instante dos recolhimentos. Preces, orações, leituras por cima da cama, uma música ao ouvido, tantas vezes tristeza e solidão. Insônia em uns, cochilos em outros, adormecimento total na maioria.
A noite se prolonga com seus intervalos de saudades, lágrimas, amores, sonhos, fome e sede, inusitados e pesadelos. Na madrugada adentro é que o sono parece chegar mais pesado. Contudo, não demorará muito para o galo cantar, o relógio da igreja despertar, a primeira alva do dia surgir pela fresta da janela ou no telhado quebrado lá em cima. Também nos relógios, despertadores, nos instintos próprios de cada um.
Contudo, aquela noite foi longa demais. Até eterna, como afirmaram depois. Gente que abriu o olho no meio da escuridão achou tudo de uma estranheza sem igual. Tudo escurecido, puro negrume. O relógio havia parado sem qualquer explicação. Adormeceu novamente na expectativa de já despertar com os primeiros sinais da manhã.
Dormiu profundamente e acordou num pulo. Não deveria ter dormido tanto, mas olhou de canto a outro e a mesma escuridão da noite mais fechada. O relógio não saía do lugar, o galo não cantava, não havia nenhum barulho próprio do amanhecer. Quem abriu a janela só avistou a lua brilhando lá em cima. Os grilos continuavam com seus barulhos noturnos.
Com todo mundo estava acontecendo o mesmo, com essa noite que parecia não ter fim e uma manhã que nem dava sinais que logo mais iria surgir. Muita gente, porque já havia dormido o suficiente ou porque tinha certeza que já devia levantar, saiu da cama quase que para acordar a manhã, chamá-la, fazê-la existir.
Mas nada da luz da manhã aparecer. E o pior que a escuridão parecia ainda mais fechada e noturna. Em todo lugar, a madrugada vem trazendo consigo uma cor diferente, um sombreado que aos poucos vai clareando. Contudo, era noite sem madrugada e sem qualquer sinal que a manhã teria de acontecer.
E realmente não aconteceu. Os relógios recomeçaram seu funcionamento normal, os minutos passavam, a hora matinal já sendo marcada, porém nada de qualquer luz do alvorecer. Um desespero total entre todos, pois todos já haviam despertado e levantado e agora procuravam, espantados e amedrontados, uma explicação para aquilo tudo.
Queriam saber por que a noite não ia embora, porque aquele negrume fechado não se findava de vez, porque a escuridão continuava tomando o lugar do despertar da natureza, do canto dos pássaros, das janelas abertas, dos primeiros de sol. Queriam principalmente saber se aquele acontecimento logo passaria ou seria prolongado. E se a noite não fosse mais embora e a manhã jamais voltasse a brilhar?
Então começaram as preocupações mais acentuadas, as lágrimas, os desesperos, as tristezas, as agonias, as aflições. Gente ajoelhada orando, de mãos dadas em rogos e promessas, debruçada pelos cantos imaginando o pior. Uns diziam que era o fim dos tempos, outros afirmavam que o pecado do homem havia provocado aquele eclipse eterno.
Uma multidão nas portas, janelas, calçadas, no meio das ruas, nas praças, em todos os lugares. Palavras, gritos, murmúrios, soluços, um desespero total. Olhando para o alto, implorando por um pouco de luz da manhã, gritavam e repetiam que juravam jamais deixar de aproveitar o melhor que as manhãs pudessem oferecer e a luz do dia permitisse realizar para o bem de todos.
Uns falavam em regar os jardins todas as manhãs, em fazer as orações matinais, em colher frutos para distribuir com os pobres, em semear a terra e fazer o bem desde o amanhecer. Outros diziam que iriam transformar totalmente suas vidas, aproveitando cada instante de luz que a vida lhes oferecesse. Já outros, em total desespero, revelavam abertamente seus pecados e crimes, e ajoelhados afirmavam que nunca mais trairiam, roubariam, mentiriam ou injustamente difamariam o próximo.
O alvoroço era tanto que quase ninguém percebeu quando uma nuvem se abriu e um pedaço da luz da manhã começou a brilhar. Depois disso foi uma festa só. E quando o amanhecer surgiu completamente, lindo e inspirador, cada um tomou o seu rumo, deixando para trás as promessas feitas.
E tudo voltou à normalidade entre as pessoas, com os mesmos ódios, pecados e desperdícios da grandiosidade da vida.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

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