Rangel Alves da Costa*
Não pretendo contar um causo, abordar sobre
conceitos e teorias nem tecer filosofias acerca da realidade do mundo e da vida.
Quero apenas falar de minha história através da lembrança de meu povo, de
minhas raízes sertanejas. Da porta de casa pra dentro e do batente pra fora,
muito hei que recordar.
Minha mãe era do lar, como se dizia por lá.
Mesmo estudada, preferiu se dedicar a casa e à família. Cozinhava, bordava,
sonhava, era feliz, ainda que tenha encontrado muitos espinhos na estrada.
Deixou sete filhos e um bocado de netos. E também uma saudade danada.
Conheci Adília, aquela mesma cangaceira do
bando de Lampião, esposa de Canário, que havia deixado a vida de luta
sangrenta de coito em coito, de emboscada em emboscada, com uma marca de bala
na perna que quase estraçalha tudo. Era humilde, simpática, sorridente com os
amigos e em quem confiava. Apenas uma sertaneja com suas memórias esvoaçando
nos varais do tempo.
Meu pai era autodidata, mas se fez doutor em
tudo que colocou a mão. Foi líder político, prefeito por três gestões,
compositor, escritor, radialista, cronista maior do sertão, do seu povo e sua
história. Incansável pesquisador da saga cangaceira, deixou escritos que desvendam
verdades e desnudam mentiras. Continuará sempre lembrado e festejado como o
guardião maior da saga do povo sertanejo.
Conheci Sinhá Constância, ou simplesmente a
Velha Constância, mulher de grandes posses nos tempos idos, mas cujo destino
lhe reservara a solidão e o abandono. Vivia solitária numa choupana nos
arredores da cidade, daí saindo nos dias de feira para clamar pela
sobrevivência. Estendi-lhe a mão, e o coração. E nem conhecia bem o cenário de
fundo de sua história, eis que mãe de um dos maiores homens nascidos em terras
sertanejas: Zé de Julião, ou Cajazeira no bando de Lampião. Este mesmo que após
sair com vida da chacina de Angico não conseguiu vencer as injustiças humanas,
as covardias e as ingratidões. Sonhou ser prefeito de seu lugar, de seu Poço
Redondo, e por isso foi perseguido e morto através das mãos injuriosas da
política. E como queria tê-lo conhecido!
Meu avô paterno era homem de sangue no olho,
de poucas palavras e muitas ações. Comerciante, fazendeiro, caçador, não sabia
ler nem escrever. Mas ninguém fazia medição de terra melhor que ele. Também não
errava no nome nem na conta de quem lhe devia. Um apaixonado pelo sertão, se
comprazia em ouvir repentes e seguir como romeiro para os lados do Juazeiro do
Padim Ciço. Era devoto sem querer deixar transparecer.
Conheci Abdias, Mané Cante, Tião de Sinhá,
João Paulo, Humberto, Chico de Celina, os da família Vítor, e tantos outros
sertanejos hábeis nas lides da vaqueirama, da montaria agalopada, do aboio, no
trato da terra e do animal, nos afazeres daquele mundo de lua e de sol. Dialoguei
histórias sem fim, proseei palavras matutas pelo prazer da sabedoria naquele
povo. Bebi da mesma casca de pau, mordi o mesmo umbu e ainda trago comigo aió e
embornal cheio de relatos e de saudades daqueles encontros inesquecíveis.
Meu avô materno era bodegueiro, amigueiro,
honrado pela amizade que mantinha com Lampião. Figura proeminente na povoação
poço-redondense, abria as portas de sua residência para repasto e repouso de
muita gente afamada. Foi em sua casa, sob as bençãos milagrosas da panelada
sertaneja de minha avó Marieta, que o Capitão do sertão dividiu a mesma mesa
com o Padre Arthur Passos, no célebre episódio conhecido como o encontro do
mosquetão e da cruz. Depois da gulodice do regabofe, o bando de Lampião foi
assistir missa celebrada pelo vigário. Mas com a condição de todo o armamento
pesado ficasse do lado de fora. Dizem que foi assim. E foi mesmo.
Conheci Mané Félix, aquele mesmo reconhecido
como um dos coiteiros mais confiados pelo Capitão Lampião. Dizem que o líder
cangaceiro lhe confiava os passos e os segredos sem temer fraqueza ou traição.
Era homem simples, de elevada estatura, mas lentamente caminhando pelas marcas
do tempo e tendo sempre na cabeça seu chapéu de couro cru. De vez em quando
batia na porta de casa e perguntava por Alcino, meu pai. E lá de dentro sempre
ouvia que se sentisse à vontade que dali a pouco tinham muito que conversar.
Não demorava muito e os dois já percorriam nas palavras os caminhos sertanejos,
as veredas de um tempo de vinditas e padecimentos.
Conheci tantos e tantos e muito mais. Conheci
os meus e conheci muita gente cujo sangue sertanejo nos tornava uma só família,
uma só raiz. E guardo as feições e as palavras como retratos persistentes na
minha memória e no meu olhar ao passado. Por isso sou de hoje e de ontem. E em
mim nada é esquecido se faz parte do meu mundo e da minha história.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário