Rangel Alves da
Costa*
Após o
entardecer a vida já começa a mudar. Aqueles raios de fogo, de vermelho intenso
abrindo espaço entre as nuvens, começam a provocar intensas transformações na
alma, no espírito, na sensibilidade do ser.
Porque o
entardecer é o portal para o que mais tarde virá, quando as sombras da noite
descerem e o negrume espalhar seus mistérios debaixo da lua. Contudo, com lua
ou não, vez que às vezes ela está sonolenta e não aparece, é na noite que o véu
se descortina e tudo acontece, e tudo se transforma.
Não falo
da coruja agourenta piando nos escondidos mais adiante, do gato branco que se
torna pardo e faz do telhado uma cama de cio, do sonho ou do pesadelo que se
esconde por trás da cortina esperando a pessoa adormecer. E dizem que o
bicho-papão também fica escondido debaixo da cama.
Também não
falo dos lobisomens famintos com seus olhos de fogo; do mesmo modo não me
refiro aos seres estranhos que surgem no meio da noite. Fogo-corredor,
mula-sem-cabeça, as correntes dolentemente se arrastando, as almas penadas
vagando ao léu. Ainda bem que tudo isso ocorre na escuridão, sem que todos
tenham o desprazer de ver ou cruzar.
Falo dos
mistérios de outra noite, a noite encantadora e extasiante; o negrume do
melódico silêncio e da poesia nos corações noturnos; a escuridão que aflora
beijos, abraços, entregas corporais, traições, volúpias, insaciabilidades. A
noite e sua ventania, seu sopro e seu encontro marcado; o instante das horas
escondidas e dos momentos apressados demais.
Falo da
noite do silêncio e da solidão nos quartos fechados, nas janelas entreabertas,
testemunhando os delírios e os soluços de uma vida em desvão; das luzes opacas
mostrando os destinos dos noctívagos, ébrios, apaixonados, daqueles que vão em
busca de meio quilo de sexo; das sombras escurecidas descendo sobre os jardins
e praças solitárias, quando as folhagens de outono ainda alçam seu voo
distante. E passam solenes pelas janelas das mocinhas chorosas.
As noites
assim são outras noites, bem diferentes daqueles momentos após a boca da noite
até o primeiro clarão da madrugada. Estes são os noturnos comuns, normais, das
portas fechadas, das preces e orações, dos jogos sexuais rotineiros, das
conversas reservadas, das camas prontas para o adormecimento. Bem diferentes da
outra noite existente, visível e pulsante ao lado ou mais adiante, nos
escondidos da escuridão.
Além desse
noturno escondido, revelado apenas para aqueles que ousam desafiar os perigos,
há ainda a noite que é fuga e entorpecimento. Uma noite cheirando a limão, a
fumaça de cigarro, a cachaça e rum, a perfume barato, a suores e a sexo. Nas
tabernas, bares de esquina, botequins nas distâncias, cabarés e prostíbulos
imundos, a noite se embriaga para sobreviver.
Prostitutas
abrem suas barracas e comercializam seu sexo, com pechinchas e duvidosas
procedências e validade. Depois misturam vodka com cachaça, rum com cerveja,
fumam cigarro barato, querem se drogar. Mas as drogas são mais caras que seus
produtos, que o seu sexo. Então se embriagam, se xingam, se matam. E renascem
na noite seguinte, no mesmo lugar, já mil anos mais envelhecidas.
São todas
as noites de noites assim. E até mesmo a noite vivida em clarão, onde a saudade
não deixa dormir e a ponta de lua é que resta de alento, desperta o mistério desse
instante tão mágico. E dizem que perde sua razão de viver aquele que ousar
revelar os segredos da noite.
Por isso
nada sei que possa ser revelado. Da noite apenas conheço seu canto distante e o
seu véu que encobre uma lágrima. Da noite apenas conheço o que releio no mesmo
livro da janela aberta, cujas palavras sempre falam em estrelas cadentes que
vagueiam em busca de felicidade. O resto que sei a noite esconde na noite.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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