Rangel Alves da Costa*
Jagunço não, ex-jagunço, havia esclarecido
Soró na última vez que abriu a boca para conversar com alguém. Quem ouviu tal
consideração também não pôde escutar mais nada, eis que caiu estatelado no
chão, cravado de balas, sangrando de correnteza.
Havia ido matar Socó, bateu à sua porta, foi
recebido do lado de fora, começou a entabular um proseado falsamente amigueiro,
mas não conhecia as artimanhas do perigoso assassino. Assim que fez a pergunta
para confirmar se estava diante do jagunço Soró, este respondeu já atirando:
Jagunço não, ex-jagunço.
Ex-jagunço porque já havia se comprometido a
não matar mais ninguém de emboscada, tocaia ou qualquer coisa parecida. Mas
percebeu que aquele cabra trazia sua morte sob encomenda, por isso matou. E depois
disso se manteve disposto a não puxar mais o gatilho nem a peso de ouro. Seu
desejo agora era outro, sua vida também, só não sabia se iria conseguir.
Depois de encharcar as mãos de sangue para
jogar o cabra nos escondidos por trás da serra, voltou decidido a não lavar as
mãos quanto tempo fosse necessário para se impregnar do cheiro de morte e
jamais esquecer quantos já tinha derrubado na frieza covarde, às escondidas,
por ninharia. Ninharia sim, pois matar para receber vintém do coronel não dava
nem pra manter família. Ainda bem que não tinha nem mulher nem filho.
Morava sozinho, nos escondidos do mundo, mas
se fazia presente assim que o seu patrão mandasse notícia que estava precisando
de um servicinho. Montava no cavalo, se armava até os dentes e riscava na
malhada do casarão. De lá já saía sabendo quem deveria emboscar. Quase sempre
alguém que estivesse servindo como empecilho para as empreitadas sempre
maldosas daquele seu patrão, afamado senhor de terra e bicho.
Mas já estava cansado de ser usado para tirar
a vida de gente que nem conhecia, talvez até pessoas de bem, inocentes. Não
havia conseguido nada metendo bala na testa de um e de outro. Pobre havia
nascido e pobre continuava. E agora carregando nas costas a culpa por tantos
crimes. Não pensava nem em pecado, pois sabia que já prometido ao fogo mais
ardente que existisse. O problema maior era cair nas mãos da justiça e saber
que seu patrão, mesmo mandando em tudo, nada faria para livrá-lo da condenação.
Precisava dar um basta nisso tudo. Uma
semana, um mês ou ano sem puxar gatilho já estava de bom tamanho. Se até lá não
fosse acusado por tantas mortes, então pensaria até em morar na cidade e se
passar como pessoa comum, mesmo sabendo que sombras e pesadelos terríveis o
acompanhariam pelo resto da vida fosse aonde fosse.
O coronel mandou avisá-lo que precisava
acertar contas com outro coronel, agora tornado inimigo, e resolveu não ir. Já
sabia que lhe caberia tocaiar o poderoso até deixá-lo estrebuchado no chão,
sufocado até a morte na poça de seu próprio sangue. Não foi e sabia que pagaria
pela desfeita. Conhecia bem a sanha assassina do patrão.
Tinha certeza que enviaria alguém para
matá-lo e aquele cabra chegado com boa conversa, depois perguntando se estava
diante do jagunço, não era outro senão o mensageiro da morte, outro matador
pago para o serviço. Foi por isso que não pensou duas vezes. Matou antes que
fosse acertado e morto. Mas não era pra ser assim.
Não era pra ser assim pela promessa feita. Havia
se comprometido a não ser mais jagunço, a não matar mais ninguém nessa cruel
condição. Por isso mesmo que precisava sentir nas mãos aquele cheiro putrefato
de morte, sentir ainda aquele sangue repugnante tão perto de si, sufocando suas
entranhas.
Ora, sangue e morte tinham feito parte de
toda sua vida de vilezas e crueldades. Mas suportaria aquela presença
abominável? O pedaço de pão vinha acompanhado da morte, o punhado de farinha
seca na presença do sangue, tudo o que tocava vinha acompanhado de seu ofício
assassino.
Sentou num tronco, levantou as mãos diante
dos olhos, depois passou os dedos podres pelo nariz. Não sabia que a morte
fedia tanto, mas não lavaria as mãos. Não enquanto guardasse na memória tantas
atrocidades cometidas. Mas suportaria tanto martírio, ter nas mãos as
lembranças dos crimes covardemente cometidos?
E nunca mais lavou as mãos nem tomou banho. E
quem o encontrasse pelas estradas, completamente louco, pensaria apenas ser
mais um insano imundo, maltrapilho, caminhando sem destino. E era. Só que este
implorava por água benta para lavar as mãos.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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