SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 10 de julho de 2017

BEATAS E REZADEIRAS


*Rangel Alves da Costa


Sou sertanejo, lá das distâncias onde o sertão é mais longe. E que bom ter nascido num lugar que ainda não perdeu seu encantamento humilde e singelo de ser. Que bom continuar – quando permitem os afazeres da capital - convivendo com o bucólico, o simples, o afetuoso. Ainda se ouve o galo cantar, ainda se colhe fruta caída no sopro da madrugada. Há purrão no quintal e mastruço no cantinho do cercado.
Um mundo assim somente é possível onde o progresso ainda não espanou tudo de vez. Enquanto a roupa vai secando no varal, a cadeira de balanço dança debaixo do umbuzeiro. E nela a velha senhora cheia de saudade dos tempos idos. Bem ao lado o cachorro magro adormecendo sua solidão. Na ventania, as folhagens secas sujando tudo. Mas tudo muito bonito assim mesmo.
Verdade que muito já foi mudado, mas nem tudo foi transformado de vez. Compadres ainda conversam debaixo de pés de pau, comadres tomam conta da vida dos outros enquanto varrem as calçadas, o leiteiro anuncia o seu litro logo ao amanhecer. Verdura fresca à venda bem na porta de casa, queijo de coalho e requeijão de quintal. Nada melhor que a raspa na junção da goiabada.
Grande parte das pessoas, principalmente as mais humildes e empobrecidas, encontram nas palavras e nos cumprimentos provas de amizade e de valorização do outro. Avistar e abraçar um morador das brenhas matutas ou dos arredores mais esquecidos, e com ele começar uma prosa descompromissada, é o mesmo que adoçar seu coração para o dia inteiro. Para muitos, nada mais precioso que um bom dia, um boa tarde, um boa noite.
Até os sinos ecoam diferentes nas distâncias matutas. Geralmente na boca da noite, cada badalar é como um chamado ao fervor da prece, da oração, do diálogo ajoelhado perante o oratório. Mas também quando tocam mais entristecidos, mais compassados, e assim para anunciar a partida de alguém. Sinos que ecoam a fé e também as dores da despedida. E cortando os silêncios chegam aos lares tomados de espanto ou enquanto o café cheiroso vai se espalhando nos arredores.
Mas as matrizes ou igrejinhas sertanejas nunca silenciam. Mesmo que os sinos descansem seus chamados e avisos, ainda assim as vozes da fé continuam entoando cantos, rezas, ladainhas e orações. E tudo ecoado pelas vozes das beatas e rezadeiras. Como se fossem de um coro orquestral, tais mulheres elevam suas vozes como se estivessem perante os portais de um paraíso e em busca da salvação do mundo.
 Ainda cedo do dia, enquanto a cidade apenas desperta, a igreja já está de portas abertas para ecoar os cantos de fé, os hinos religiosos, as orações e as rezas do povo sertanejo: “Ave Maria cheia de graça, o Senhor é convosco; bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Santa Maria Mãe de Deus, rogai por nós pecadores agora e na hora da nossa morte. Amém”.
Durante as missas e outros ofícios religiosos, quando a igreja está tomada de fiéis e as devoções pulsam nos corações com maior intensidade, um grupo de senhoras nas proximidades do altar, com feições contritas e olhares voltados à Cruz do Senhor, entoam: “Dai-nos a bênção, ó Virgem Mãe, penhor seguro de sumo bem. Dai-nos a bênção, ó Virgem Mãe, penhor seguro de sumo bem. Vós sois a rosa de puro amor, encheis a terra de puro odor...”.
Nas distâncias interioranas, ouvir os cantos de fé possui significação especial.  É como se a igreja tristemente silenciasse se tais vozes não forem ouvidas e seus timbres não sejam reconhecidos. Como que sonolenta, de cabeça baixa, ecoa a velha beata em máxima devoção: “A nós descei divina luz, a nós descei divina luz, em nossas almas acendei o amor, o amor de Jesus, em nossas almas acendei o amor, o amor de Jesus...”.
De suas vozes, e todas as vozes sertanejas, as canções e os hinos tão sublimemente enaltecedores como tristonhos, eis que também ecoados nos ofícios de despedidas, nas sentinelas e incelenças, como se aquelas vozes fossem ecos de um além tão próximo de nós e a nos chamar à reflexão da vida, da morte, da fé, da valorização das verdades cristãs. Assim como o Ofício da Imaculada Conceição:
“Agora, lábios meus, dizei e anunciai os grandes louvores da Virgem Mãe de Deus. Sede em meu favor, Virgem Soberana, livrai-me do inimigo com o vosso valor. Glória seja ao Pai, ao Filho e ao Amor também, que é um só Deus em Pessoas três, agora e sempre, e sem fim. Amém... Ouvi Mãe de Deus, minha oração. Toquem vosso peito os clamores meus... Sede em meu favor, Virgem Soberana, livrai-me do inimigo com o vosso valor...”.
E que doçura na alma ouvir “Tu és a razão da jornada”: “Um dia escutei teu chamado, divino recado, batendo no coração. Deixei desta vida as promessas e fui bem depressa no rumo da tua mão. Tu és a razão da jornada, Tu és minha estrada, meu guia e meu fim. No grito que vem do teu povo, Te escuto de novo chamando por mim...”.
Assim o canto das velhas beatas, das rezadeiras. Um céu ecoado da terra.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Ana Bailune disse...

Sempre uma bela crônica!
Acho que você adoraria ler o autor Carlos Solano (procure no Google). Ele também Adora as rezadeiras, e tem uma personagem - a Dona Francisquinha - que parece ser sua vizinha.