*Rangel Alves da Costa
Sou sertanejo, lá das distâncias onde o
sertão é mais longe. E que bom ter nascido num lugar que ainda não perdeu seu
encantamento humilde e singelo de ser. Que bom continuar – quando permitem os
afazeres da capital - convivendo com o bucólico, o simples, o afetuoso. Ainda
se ouve o galo cantar, ainda se colhe fruta caída no sopro da madrugada. Há
purrão no quintal e mastruço no cantinho do cercado.
Um mundo assim somente é possível onde o
progresso ainda não espanou tudo de vez. Enquanto a roupa vai secando no varal,
a cadeira de balanço dança debaixo do umbuzeiro. E nela a velha senhora cheia
de saudade dos tempos idos. Bem ao lado o cachorro magro adormecendo sua
solidão. Na ventania, as folhagens secas sujando tudo. Mas tudo muito bonito
assim mesmo.
Verdade que muito já foi mudado, mas nem tudo
foi transformado de vez. Compadres ainda conversam debaixo de pés de pau,
comadres tomam conta da vida dos outros enquanto varrem as calçadas, o leiteiro
anuncia o seu litro logo ao amanhecer. Verdura fresca à venda bem na porta de
casa, queijo de coalho e requeijão de quintal. Nada melhor que a raspa na
junção da goiabada.
Grande parte das pessoas, principalmente as
mais humildes e empobrecidas, encontram nas palavras e nos cumprimentos provas
de amizade e de valorização do outro. Avistar e abraçar um morador das brenhas
matutas ou dos arredores mais esquecidos, e com ele começar uma prosa
descompromissada, é o mesmo que adoçar seu coração para o dia inteiro. Para muitos,
nada mais precioso que um bom dia, um boa tarde, um boa noite.
Até os sinos ecoam diferentes nas distâncias
matutas. Geralmente na boca da noite, cada badalar é como um chamado ao fervor
da prece, da oração, do diálogo ajoelhado perante o oratório. Mas também quando
tocam mais entristecidos, mais compassados, e assim para anunciar a partida de
alguém. Sinos que ecoam a fé e também as dores da despedida. E cortando os
silêncios chegam aos lares tomados de espanto ou enquanto o café cheiroso vai
se espalhando nos arredores.
Mas as matrizes ou igrejinhas sertanejas
nunca silenciam. Mesmo que os sinos descansem seus chamados e avisos, ainda
assim as vozes da fé continuam entoando cantos, rezas, ladainhas e orações. E
tudo ecoado pelas vozes das beatas e rezadeiras. Como se fossem de um coro
orquestral, tais mulheres elevam suas vozes como se estivessem perante os
portais de um paraíso e em busca da salvação do mundo.
Ainda
cedo do dia, enquanto a cidade apenas desperta, a igreja já está de portas
abertas para ecoar os cantos de fé, os hinos religiosos, as orações e as rezas
do povo sertanejo: “Ave Maria cheia de graça, o Senhor é convosco; bendita sois
vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Santa Maria
Mãe de Deus, rogai por nós pecadores agora e na hora da nossa morte. Amém”.
Durante as missas e outros ofícios
religiosos, quando a igreja está tomada de fiéis e as devoções pulsam nos
corações com maior intensidade, um grupo de senhoras nas proximidades do altar,
com feições contritas e olhares voltados à Cruz do Senhor, entoam: “Dai-nos a
bênção, ó Virgem Mãe, penhor seguro de sumo bem. Dai-nos a bênção, ó Virgem
Mãe, penhor seguro de sumo bem. Vós sois a rosa de puro amor, encheis a terra
de puro odor...”.
Nas distâncias interioranas, ouvir os cantos
de fé possui significação especial. É
como se a igreja tristemente silenciasse se tais vozes não forem ouvidas e seus
timbres não sejam reconhecidos. Como que sonolenta, de cabeça baixa, ecoa a
velha beata em máxima devoção: “A nós descei divina luz, a nós descei divina
luz, em nossas almas acendei o amor, o amor de Jesus, em nossas almas acendei o
amor, o amor de Jesus...”.
De suas vozes, e todas as vozes sertanejas,
as canções e os hinos tão sublimemente enaltecedores como tristonhos, eis que
também ecoados nos ofícios de despedidas, nas sentinelas e incelenças, como se
aquelas vozes fossem ecos de um além tão próximo de nós e a nos chamar à
reflexão da vida, da morte, da fé, da valorização das verdades cristãs. Assim
como o Ofício da Imaculada Conceição:
“Agora, lábios meus, dizei e anunciai os
grandes louvores da Virgem Mãe de Deus. Sede em meu favor, Virgem Soberana,
livrai-me do inimigo com o vosso valor. Glória seja ao Pai, ao Filho e ao Amor
também, que é um só Deus em Pessoas três, agora e sempre, e sem fim. Amém...
Ouvi Mãe de Deus, minha oração. Toquem vosso peito os clamores meus... Sede em
meu favor, Virgem Soberana, livrai-me do inimigo com o vosso valor...”.
E que doçura na alma ouvir “Tu és a razão da
jornada”: “Um dia escutei teu chamado, divino recado, batendo no coração.
Deixei desta vida as promessas e fui bem depressa no rumo da tua mão. Tu és a
razão da jornada, Tu és minha estrada, meu guia e meu fim. No grito que vem do
teu povo, Te escuto de novo chamando por mim...”.
Assim o canto das velhas beatas, das
rezadeiras. Um céu ecoado da terra.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Sempre uma bela crônica!
Acho que você adoraria ler o autor Carlos Solano (procure no Google). Ele também Adora as rezadeiras, e tem uma personagem - a Dona Francisquinha - que parece ser sua vizinha.
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