*Rangel Alves da Costa
Não há nada mais gostoso e cativante que uma
feira interiorana, bem matuta mesmo, daquelas onde a singeleza brilha mais
olhos que os shoppings de capital. Tem caçuá, tem rapadura, tem bolo de milho,
tem milho verde, tem arreio, tem arroz-doce, tem melancia e melão coalhada. E
também tem aquela magia especial da presença do produtor, do feirante, das
pessoas mais simples.
Tudo aceso feito braseiro ainda na madrugada.
Pouco tempo depois já começa a fervilhar feito formigueiro. Contudo, mais tarde
tudo já parece um descampado abandonado às traças, tomado de bagaceira, sujeira
de toda espécie. Não poderia ser diferente. Já é fim de feira. Mas é no seu
percurso que está todo o encantamento.
Se feira interiorana é acontecimento dos mais
atraentes, instigante e concorrido, o que se vê quando o comércio matuto se
finda é coisa de arrepiar. As cores, os cheiros, o povo de matiz trigueiro, as
barracas, as bancas, as vozes, as frutas, verduras, farinha, a carne, de tudo
um pouco, logo dão lugar à sujeira e imundícies jamais imaginadas para um lugar
que há bem pouco guardava tantos atrativos e sabores.
Até parece que a feira espera o povo matar a
fome nas barracas cheirosas e apetitosas, se fartando da carne fresca de boi,
de porco ou de bode, ou na gulodice do sarapatel, do fígado acebolado ou ainda
da invenção sertaneja do dia, para se despedir da função. Enquanto os últimos
famintos pedem um pouquinho mais de galinha de capoeira, as barracas já estão
sendo desmontadas, os restos embalados e os caçuás recebendo o que não foi
vendido.
Já é hora de avistar, e até contar, todos os
bêbados do dia. Aqueles que começaram o dia tomando uma pinguinha, e em meio à
compra do tomate, do quilo de farinha, do pedaço de fumo de rolo, emborcaram
mais uma e depois mais outras. No tropel de fim de feira já não saem mais do
balcão, já não sabem nem quantas viraram e quantas raízes de pau talagaram sem
pestanejar.
Os bares e barracos ladeando a feira ficam
repletos depois que os compradores se dissipam e os feirantes vão contando seus
lucros e lamentando o que vai ter de retornar. Aguardente misturada com raiz ou
casca de pau, com angico, umburana, aroeira, cedro, uma vegetação sertaneja
inteira, faz a festança de um povo sempre disposto a virar mais uma. E aí é
onde está o problema.
Já tomados demais, amigos desconhecem amigos,
os inimigos de pinga se estranham de peixeira na mão. O fuzuê é criado, é um
vexame danado, por pouco um não desembucha o outro. Os dois são retirados do
ambiente e por lá mesmo, no pé do balcão ou num canto qualquer, a feirinha da
semana é esquecida. E mais tarde, completamente bêbados, às cegas, cortam
estrada para apanhar da mulher quando chegar à tapera.
“Coisa feia, um homi véio desse, pai de
famia, bom de se arrespeitá, espanta o galo pa ir pa feira e vorta feito um
gambá. Tá qui num se sustenta nem de pé, seu desgraçado. A feira, cadê a
feira?”. O coitado, sem condições de responder a contento, até mesmo porque não
sabe onde o saco de mantimentos ficou, tropeça até a malhada e começa a entoar
um desafinado e doloroso aboio. Mas doloroso mesmo vai ficar seu lombo daí em
diante.
Mas enquanto a feira vai terminando é que
algumas pessoas sempre atrasadas começam a chegar. Não que procurem o lugar pra
comprar pano de chita, água de colônia, talco de pó, presilha de cabelo ou um
quadro bonito da Virgem Maria. E também não vão até ali para escolher a
verdura, a fruta, o arroz, o café, a farinha. Nada disso. Vão precisamente para
fazer o que sempre fazem no fim de feira: colher os restos, catar os restos,
mendigar pelo chão.
Homens, mulheres, velhos, meninos, pessoas de
fim de feira. Acordaram tão ou até mais cedo que as outras pessoas que passaram
pelas suas portas em direção ao comércio semanal interiorano. Avistaram
adiante, virando a curva, seguindo de mochila, saco ou sacola à mão pra colocar
as compras. Aquelas pessoas que passam e que vão certamente levam algum no
bolso e poderão escolher sem pedir, sem a submissão da mendicância.
Porém muitas outras não. Quando as pessoas
retornam com suas compras e quando, vigiando pelos arredores, sentem que o
restante que ficou por ali espalhado não possui mais dono, é que vão catar o
alimento do dia e talvez o de amanhã. Banana amassada ou apodrecida, tomate e
pimentão imprestáveis, repolhos e folhas deixados pelos cantos. E que festa ao
olhar da penúria, da necessidade, da precisão.
Alguns desses sacrificados chegam logo cedinho,
se misturam a feirantes e compradores e pedem o quanto podem. Mas outros não.
Outros, tomados pela imorredoura honra matuta, preferem catar os restos a
estender a mão diante de outra mão, de outro olhar sertanejo. Seria desonra
demais, seria dor ainda maior.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário