*Rangel Alves da
Costa
De repente
me esqueço de que sou ainda menino - aquele mesmo menino de banho nu debaixo de
chuva e brinquedo de ponta de vaca pelos quintais - e me surpreendo matutando
sobre o meu percurso de vida.
Menino
sertanejo de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo, arribado pra capital
aos onze anos, mas sempre com os pés fincados na aridez da terra e de cordão
umbilical ainda preso na raiz mais profunda.
Em meio à
reflexão, a recordação de meus pais e o quanto ainda sou daquilo tudo que um
dia foram. Minha mãe Dona Peta, moça bonita, filha de Dona Marieta e Seu China
do Poço (em cuja residência Lampião um dia dividiu a mesa com o Padre Artur
Passos, mas não sem antes quase uma guerra ser declarada entre a cruz e a
espada), despediu-se dessa vida sem jamais perder a candura sertaneja, numa
docilidade de acalantar espinhos e flores.
Já o meu
pai Alcino Alves Costa, igualmente poço-redondense de passo e estrada, e filho
de Dona Emeliana e Seu Ermerindo, representou em vida a plena caracterização
sertaneja, matuta, caipira, cabocla, ainda que tanto tivesse representado na
política, na escrita, no verso, na sabedoria. Estudou somente até a quarta
série primária, porém se fez doutor em tudo aquilo que lançou mão com afinco e
perseverança.
Nasci
junto com mais seis irmãos. E tenho tantos outros irmãos que nem sei a conta.
Mas tenho muito mais irmãos. Todo sertanejo de Poço Redondo é meu irmão, e
irmão de sangue, de destino e sina, de orgulho e dor. Como se vê, minha família
é grande demais para eu ser sozinho.
Não sei se
sou diferente dos demais, mas também sei que sou diferente. Explico. Talvez eu
tivesse nascido para jamais colocar os pés na capital. Ainda hoje eu caminho
sem jeito entre o cimento, o ferro e o asfalto. E daí muito do que meu pai um
dia também pensou.
O amor de
Alcino por Poço Redondo era tão grande que um dia abdicou da capital para
retornar ao sertão. Era estudante no Colégio Manoel Luiz, em Aracaju, quando
resolveu que seu mundo era outro: o sertão. Arrumou a mala e quase levanta voo.
Retornou
ao sertão, colocou havaianas nos pés e nunca mais saiu. Mas eu não quis fazer
assim e nem posso fazer assim. Eu tive que ficar para mais adiante, através do
estudo, dignificar a terra que me viu nascer. Não sou egoísta, sempre prefiro
oferecer a ter.
Na capital
permaneci e me tornei o homem mais rico do mundo. Tenho ouro em mim, tenho
tesouros em mim, tenho riquezas infinitas em mim: um sertanejo que aprendeu
além dos livros. Aprendeu a ser humilde, aprendeu a pensar, aprendeu a equação
exata entre o estudo e a sabedoria: a certeza que sempre se sabe tão pouco.
Não levo
anel no dedo por que não preciso. Meu pai merecia muito mais que eu. Se há
doutor de sertão ele era um. Mas o anel que carregou foi a havaiana nos pés e a
persistência matuta em conhecer cada vez mais de sua terra, de seu povo, de sua
história. Conheceu e não ficou pra si mesmo. Seu legado continua cada vez mais
vivo.
E é neste
passo que o filho de Alcino - que sou eu - se torna ainda mais filho de Alcino.
Hoje ainda moro na capital, mas não levanto os pés de Poço Redondo. Pelas suas
roupas ando de sapatos e chinelos, mas sempre arrastando as mesmas havaianas
que um dia meu pai arrastou. Por quê?
Por que
além de filho de Alcino tenho outro Alcino dentro de mim. Por que além de filho
de Alcino tenho o mesmo sertão de Alcino dentro de mim. Por que além de filho
de Alcino levo comigo as palavras de Alcino: ame seu sertão e faça seu sertão
ser amado!
Não sou
Alcino. Apenas filho. Mas queria ser o próprio Alcino revestido de vida. E de
uma vida tão bela como as craibeiras no seu florescer. Mas a vida é flor de
mandacaru. E dura tão pouco a flor do mandacaru.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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