*Rangel Alves da Costa
Neste 25
de Julho, Dia do Escritor, eis que pelo Messenger me chega algo que jamais
imaginei. E que belíssima surpresa! Vocês se lembram da música Engenho de
Flores, brilhantemente interpretada por Diana Pequeno? Sim, aquela mesma que
diz: “Ê alumiô toda terra e mar, ê alumiô toda terra e mar, eu vi fortaleza
abalar, agora que eu quero ver se couro de gente é pra queimar. Vou pedir pra
São João, Cosme Damião, pra nos ajudar. Quero o apito do Engenho de Flores
chamando pra trabalhar. Quero o apito do Engenho de Flores chamando pra
trabalhar. Ê alumiô toda terra e mar, ê alumiô toda terra e mar...”. Pois bem,
o compositor desse verdadeiro hino é o maranhense Josias Sobrinho. E nesta
quarta-feira abro o Messenger e ele, o próprio Josias, está à minha procura
para dizer: “Boa tarde, me perguntaram sobre o texto “Esse Engenho de Flores”.
Já conhecia e sempre soube como seu. Estou certo? Um amigo aqui de São Luís
quer incluí-lo em uma publicação sobre personalidades da região de onde sou
originário e me falou que seria de outra pessoa”. Significa dizer que o Josias
me pede permissão para que o texto sobre sua música seja incluído. E o que
respondi? A honra será minha, Josias. Ter gostado de um texto que escrevi sobre
sua famosa música e ainda incluí-lo num livro sobre sua obra, não haverá honra
maior a um sertanejo. A seguir, o texto “Esse Engenho de Flores”.
Verdadeiramente,
se existe uma música que mexe comigo, me aflora tudo ao mesmo tempo, esta se
chama Engenho de Flores. Ao irromper a melodia, o ritmo contagiante, é como se
saíssem dos sons zabumbas, chocalhos, violas, caixas, pandeiros e um povo
enfeitado de fitas rodando ao redor, cantando o boi, pisando festeiro.
Cantiga
bonita, que viaja nas veredas do nosso espírito. Cantiga diferente, com cheiro
de gente e de festança popular. Por isso mesmo nem de longe se trata de uma
canção romântica, com melodia de cadência apaixonante, ou daquelas páginas
musicais, também chamadas de clássicas, inesquecíveis no percurso da vivência.
Nada disso. Engenho de Flores é apenas um buquê de sentimentos.
Composta
pelo cantor e compositor maranhense Josias Sobrinho e gravada com grande
sucesso por Diana Pequeno, é mais raiz, mais gente, mais suor e povo do que
propriamente música. Se for possível uma definição, diria que é um bailado
popular, à moda da cantoria de boi. E ao ouvir a pessoa também se enfeita todo,
coloca o seu colorido de roda, se enfeita de fita e de chapéu, começa a rodar
atrás do povo em cantoria.
Contudo,
passada a euforia do ritmo, nas entrelinhas da cantiga se encontra um
verdadeiro hino à liberdade, uma bandeira do pobre trabalhador sendo libertado
da submissão cotidiana, na labuta diária no engenho ou nos latifúndios, uma luz
que se acende para chegar um novo dia de canto e alegria.
Um rápido
olhar sobre a letra e logo se imagina o povo na sua luta diária para
sobreviver, no desvão da vida que faz pingar sangue no lugar do suor. E lá vai
o corpo cansado ainda de ontem para a labuta do dia, pois a empreitada chama; a
foice, o facão e a enxada chamam. Mas quer dizer muito mais, pois é exatamente
para mostrar o momento em que o povo não tem mais que suportar tantas agruras
nas mãos dos carrascos empregadores.
E na
letra, lá pelos seus escondidos, ouvem-se o barulho da máquina, o apito do
trem, as dores nos corpos que se dobram em sacrifício; da ventania que sopra um
lamento. E sente-se o cheiro da palha, da palha da cana, da fumaça do engenho,
do suor endurecido, da terra queimando, do sol escaldando e esturricando tudo.
E é como
se avistasse nas feições desse povo humilde uma junção de sacrifício e fé, de
sofrimento pela realidade vivida e religiosidade exacerbada, de inconformismo e
alegria por estar sobrevivendo para continuar na luta. E o que seria então o
Engenho de Flores cantado na música senão a dor na sublimazia da vida? Ou seria
a fronteira entre a dor e a liberdade festeira? Tudo.
Engenho de
Flores que poderia também se chamar sacrifício e esperança. Engenho de Flores
que poderia também ser denominado o imenso usurpador diante do pequenino que
lhe dá valia e enriquecimento. Engenho de Flores que também é verdadeiro
Engenho de Flores, com suas riquezas tiradas do sacrifício dos pobres e
humildes trabalhadores. E todos os dias, ao apito da alma que não mais se
assusta, levantam e vão fiar mais um traçado de sua sina.
Não há que
se duvidar de nada disso porque o trem apita, a letra diz; porque chama o povo
trabalhador, a letra diz; porque o povo vai virar fumaça e cinza, a letra diz;
porque o povo só suporta a ingrata sorte pela fé que possui em São João, Cosme
e Damião, como a letra diz. E que bela letra, que síntese melodiosa das
fascinantes aflições dos humildes rumo à sua libertação:
“Ê alumiô
toda terra e mar/ Eu vi fortaleza abalar/ Agora que eu quero ver/ Se couro de
gente é pra queimar/ Ê alumiô toda terra e mar/ Eu vi fortaleza abalar/ Agora
que eu quero ver/ Se couro de gente é pra queimar/ Vou pedir pra São João/
Cosme e Damião/ Pra nos ajudar/ Era o apito do Engenho de Flores/ Chamando pra
trabalhar/ Ê alumiô toda terra e mar/ Eu vi fortaleza abalar/ Agora que eu
quero ver/ Se couro de gente é pra queimar/ Vou pedir pra São João/ Cosme e
Damião/ Pra nos ajudar/ Era o apito do Engenho de Flores/ Chamando pra
trabalhar/ Ê alumiô toda terra e mar/ Eu vi fortaleza abalar/ Agora que eu
quero ver/ Se couro de gente é pra queimar...”.
Daí, o que
se tem é um verdadeiro grito de liberdade de um povo que não se submete mais ao
apito do trem chamando para a sina do Engenho de Flores. E em nome desse
forjado destino a usurpação, a submissão, a escravidão na plantação e no corte
da cana, na juntada, nos afazeres da moenda, nas fornalhas queimando e soltando
fumaça com cheiro de gente.
Como diz a
letra, nesse tempo de alumiar sobre toda terra e mar não haverá mais o apito do
trem do Engenho de Flores chamando para o sacrifício de vidas. E nesse alumiar
surgido não haverá mais chicote nem açoite, nem grito nem imposição, muito
menos a queimação de couro de gente.
Ou seria o
Engenho de Flores uma metáfora? O engenho como um tempo de dor, e flores como
um tempo de liberdade. Nada disso importa, se o mais importante é que não
haverá mais couro de gente pra queimar”.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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