*Rangel Alves da Costa
Menos o sertão geográfico, conceitual,
teórico, tudo mudou no sertão. Persistem aqueles velhos ensinamentos de ser o
sertão a área incrustada na região nordestina brasileira onde predominam a
vegetação de cactáceas, com períodos de longas estiagens e a continuidade de
índices alarmantes de pobreza. Mas muito mudou em outros aspectos. Já não se
fala mesmo em sertão, mas em sertões, de modo a dizer as múltiplas e
diferenciadas características dentro do mesmo território sertanejo.
As próprias transformações sociais cuidaram
de dar outra feição ao sertão e fazendo surgir vastidões sertanejas tão
diferenciadas entre si. Pra uma ideia dessas transformações, hoje há o sertão
da seca, da falta d’água no bote e no tanque, e o sertão irrigado, rico,
produtivo, verdoso, exportando para o mundo inteiro. Um sertão rico de beira de
rio e mais acima, e também o mesmo sertão empobrecido nas beiradas do mesmo
rio. Assim o São Francisco e seus braços estendidos para uns e outros não.
Aquele sertão de jagunços e coronéis não
existe mais, ao menos com tal nomenclatura, vez que os costumes do poder e da
bala transmudaram noutras versões, e não menos violentas que antigamente. Mas
se os antigos coronéis e suas varandas de poder e de mando sumiram na poeira
dos tempos, outras patentes coronelistas surgiram em seu lugar, e dessa vez
firmadas na força do dinheiro da influência política. Logicamente que os
coronéis de outrora também se assentavam na riqueza e no poder político, só que
agora exercendo seus feudos a partir de gabinetes.
Naqueles outros sertões de jagunços,
pistoleiros, assassinos de mando, de tocaia, de emboscada e de mortes na curva
da estrada, e tudo feito no mando coronelista, foram fincadas as raízes das
muitas violências de hoje em dia. Certo que não há mais o crime pela desdita de
sangue, pela vindita odienta entre potentados, seus feudos e latifúndios. As
honras do terno de linho branco e charuto descendo no canto da boca, se
transformaram em mera pistolagem, em assassinatos por vil quantia, na covardia
desenfreada. Pela terra ainda se mata muito, pelo arame quebrado ainda muito
sangue se esvai pelos sertões embrutecidos.
Até mesmo a violência de outros tempos se
diferenciava da brutal banalidade de agora. Nos tempos cangaceiros, por
exemplo, onde o medo e o grito imperavam pelas caatingas e arredores, havia,
por assim dizer, uma violência justificada. Ou eram grupos se digladiando, em
costumeiro confronto, ou eram rixas pessoais pela honra atacada. O rifle, a
espingarda, a faca e o facão, comiam no centro e os rastros de sangue empoçavam
os caminhos sertanejos, mas nada parecido com a violência de agora. Se naqueles
tempos a violência era de valentia, agora é a da mais pura covardia.
Antigamente, nos sertões parecendo de maior
vastidão do que se tem agora, o homem, mesmo aquele mais empobrecido, conseguia
sobreviver com muito mais facilidade. Mesmo que os latifúndios se estendessem
por regiões inteiras, grande parte do homem do campo possuía sua pequena
propriedade. Poucas tarefas, quase um quintal, mas sempre um lugar para plantar
o milho, o feijão, a abóbora, a melancia, o quiabo, o maxixe, a melancia. O que
se observa hoje em dia é que os latifúndios, na sua maioria, deram lugar a
assentamentos e as pequenas propriedades saíram das mãos daqueles antigos
pequenos produtores. Por medo das investidas dos invasores das grandes
propriedades, também os pequenos proprietários cuidaram de se desfazer de seus
cercadinhos.
Num tempo onde não havia programas sociais
para garantir a básica sobrevivência, num quadrante onde as políticas públicas
para o homem do campo quase não existiam, ainda assim era possível viver sem o
estigma cruel da pobreza absoluta ou da miséria cadastrada em banco de dados.
Para a manutenção familiar, o sertanejo se esforçava no que estivesse ao seu
alcance, na roça, levantando parede, fazendo de um tempo para garantir o ganha
o pão. Mas depois, com o advento dos programas sociais governamentais, foi
forçado a ser reconhecido como pobre, todo seu encorajamento se reduziu perante
as esmolas mensalmente recebidas. Hoje é um humilhado, subjugado, um joguete de
fácil presa na mão de políticos e das políticas escravagistas.
Não é mais tempo de candeeiro, de
carro-de-bois, de burro de carga, de sertão verdadeiramente sertanejo. Longe
aqueles tempo onde a boca da noite já era hora de portas fechadas e sono
seguro. Distante aquele tempo de proseados dos amigos pelas calçadas e de
velhas senhoras bordando suas artes perante os bilros nas almofadas. Distante
um tempo de tudo simples, na singeleza e na humildade de um povo. Os novos
tempos foram apagando candeeiros, derrubando casebres de barro, dando fim ao
pote de água fria para matar a sede. Os tempos são outros e muitos diferentes
daquele idos. As inovações tecnológicas tomaram tanto os sertões que logo
haverá vaquejada com vaqueiros em riba de motocicletas.
Sim, continua um tempo de chuva e outro muito
maior de seca. Agora mesmo, depois de quatro ou cinco anos com tudo seco e
esturricado, os tanques e barragens se fartaram e os campos brotam de alegrar
coração. Quem avista os sertões de agora sequer acredita na mesma terra de
poucos dias atrás. Tudo transformado, como tudo se transforma nas lonjuras
sertanejas de meu Deus.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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