*Rangel Alves da Costa
Desde muito que venho alardeando - e de forma
mais apaixonada que verdadeira - o fim daquilo que sempre foi conceituado como
sertão. Nas minhas palavras, sempre temerosas, eu apontava que persistia somente
o sertão histórico e parte de sua geografia. Nada mais que isso. Ora, a
história não pode ser apagada e os seus passos também não, mas a geografia
desde muito vem sendo totalmente descaracterizada. Somente os limites, também
em parte, ainda são preservados.
E por que esta minha afirmação tão medonha e
espantosa? Basta lançar um olhar no que era o sertão e o que ainda se tem hoje
como sertão. Resta muito? O velho conceito diz que sertão é uma região
semiárida no Nordeste brasileiro, nas distâncias interioranas, caracterizada
por poucas chuvas e longos períodos de estiagem, com vegetação
predominantemente cactácea. Sim, as estiagens e secas grandes continuam, a
vegetação típica também, o passado histórico ainda encravado porque impossível
de ser apagado, a geografia sendo modificada a cada passo. Somente isso.
Para uma ideia da tamanha transformação
imposta ao sertão, tem-se que atualmente o sertão não é mais do sertanejo. As
migrações, principalmente a partir do surgimento de inúmeros assentamentos e da
rotineira chegada de forasteiros, foram permitindo que, atualmente, a maioria
dos habitantes do sertão seja formada por pessoas deslocadas de outros estados
e até de outras regiões do país. Perdeu-se, assim, o sentido da
contextualização comunitária, do senso familiar entre os moradores de uma mesma
povoação e a falta de interação e compartilhamento entre as pessoas.
Logicamente que as cidades e as povoações
crescem e vão perdendo sua feição de familiaridade. Noutros idos, dificilmente
uma pessoa passava pela rua para não ser conhecida. Era terra de compadres, de
comadres, de amigos, de conhecidos, de gente proseando pelas calçadas e
contando causos debaixo dos pés de pau. Quando o sino da igrejinha badalava
tristonho, anunciando uma despedida, logo a comoção se estendia entre todos,
pois todos conhecidos e com laços familiares estendidos em muitos sobrenomes.
Hoje os sinos tocam e ficam apenas as indagações. Quem partiu?
Atualmente, com o rápido crescimento (que nem
sempre vem acompanhado de desenvolvimento) as cidades e as povoações se
transformaram em verdadeiros labirintos, em locais de desconhecidos e,
infelizmente, de espantos. Pessoas da mesma localidade sem um bom dia ou boa
tarde. Pessoas que até moram nas proximidades e não se conhecem. Pessoas que
outras pessoas sequer imaginavam que por ali morassem. Tudo consequência da
perda de contextualização interiorana e a sua vida mais intimista dividida
entre muitos. E, muitas, entre ninguém. No somatório de tudo, sempre o aumento
da violência, do medo, das práticas aterrorizantes que não eram tão comuns
noutros tempos.
Alguns exemplos dizem muito bem das drásticas
transformações havidas, e não apenas pelo aumento da violência e da
criminalidade, principalmente pela disseminação e uso de drogas entorpecentes,
mas nas mudanças de hábitos mesmo. Tornou-se raridade ouvir, ainda ao longe, a
chegada de um carro-de-bois. Aquele rangido arrastado, puxado, quase não existe
mais. Pelas estradas e cidades, nada mais de burros, jumentos e jegues, fazendo
o transporte da subsistência. Cavalo agora só para enfeite, cavalgada ou
vaquejada, pois as motos chamaram para si os relinchos e se espalham
espantosamente com seus roncos enfumaçados.
Mas nem tudo está perdido. Ainda bem que nem
tudo está perdido. Felizmente ainda há sertão no sertão e, não raro, mais
próximo dos núcleos urbanos do que se imagina. Basta que a pessoa se disponha a
caminhar um pouquinho, a sair um pouco dos centros, dos bairros e conjuntos, e
logo encontrará o que resta do sertão dentro daquilo que foi sertão. Bem ali ao
lado, pouca estrada adiante - mas principalmente nos escondidos das
catingueiras e xiquexiques - ainda há muito sertão, ainda há o reconhecimento
de que o tempo sequer parece ter passado por ali. De repente, o visitante se vê
diante daquilo que somente seu idealismo bucólico sertanejo possibilitava
avistar.
Não só na casinha de cipó e barro, na moradia
de barro batido segurada em estaca e trançado de croá, bem como nos seus
arredores de mataria e cactáceas ressequidas pelos escaldamentos do sol, mas no
próprio jeito de ser e viver. Observo isso nas minhas andanças pelos sertões e
pelas visitas que eu tenho feito a famílias sertanejas. Outro dia, por exemplo,
cheguei perante a cancela de um velho e famoso mateiro, exímio caçador nos
tempos idos, bati palmas perante a moradia à minha frente e nada de obter
resposta.
Logo veio a motivação de ninguém haver
respondido, ainda que gente estivesse ali. Olhei pelo lado e logo ao fundo
avistei uma casinha de barro, daquelas já muito açoitada de tempo, de uma porta
apenas. Ante minha chegada, logo surgiram seus moradores: um casal já
envelhecido de sertanejos. Recebido com a cordialidade matuta de sempre,
enquanto proseava eu olhava de lado. Galinhas ciscando ali e acolá, um purrão
num canto de parede, um velho fogão de lenha, e o mais que podia dizer que ali
possuía a feição daquele sertão antigo.
O motivo de não morarem na casa da frente e
sim na velha casinha de trás? Não se acostumavam com casa de tijolo e cimento.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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