SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 11 de julho de 2010

ESSAS COISAS DA VIDA (Crônica)

ESSAS COISAS DA VIDA

Rangel Alves da Costa*


Nasci no alto sertão sergipano, bem lá onde tudo é mais duro e mais difícil, onde a vida brinca fazendo homem viver e o sol dá bom dia a qualquer hora da noite. De Poço Redondo sou seu moço, de onde a natureza se contradiz – a seca queimando e devorando tudo e bem ao lado o Velho Chico – e onde Lampião escolheu como última moradia para ser emboscado na Gruta do Angico. Há 47 anos nasci por lá, fato que tenho um orgulho danado de bom e cujo prazer em ser sertanejo procuro expressar no planeta onde estiver, quanto mais na cidade grande que nem de longe se compara com lá.
Como dito, seu moço, nascido no Poço Redondo, porém vivendo pouco tempo por lá, pois quando cheguei aos onze, doze anos tive que arrumar o alforje, pegar o cantil, guardar as saudades num aió e me mudar pra capital. Tinha que estudar pra ser gente. Era o que sempre ouvia. E desde então passei a viver numa fronteira, entre a capital sergipana que me acolheu com carinho e o sertão que me requer como filho.
Nos tempos de meninote na cidadezinha matuta, aprendi desde cedo a tecer uma rede vasta e contínua de amizade não só com aqueles da minha idade mas também, e principalmente, com as pessoas mais velhas. Talvez porque meu pai era muito influente politicamente naquela época – foi prefeito por três vezes – e eu sempre estava vendo pessoas em casa pedindo ajuda pra isso ou aquilo, conhecendo nos outros a pobreza e o sofrimento, é que foi nascendo no meu espírito um privilegiado senso de afeição ao mais humilde, ao sertanejo mais carente. E considerando-se quantos carentes de tudo existiam espalhados por aquele mundão, e imagine quantos amigos tive a felicidade de fazer.
Mesmo estudando na capital, todos os finais de semana tomava o caminho de casa. Chegando, dificilmente as pessoas me viam brincando ou conversando com os amigos, senão em outros afazeres voltados para estar sempre próximo àquelas pessoas simples e maravilhosas, ouvindo seus causos, suas reclamações, seus queixumes, seus relatos de esperança, suas alegrias e tristezas. Não marcava presença apenas fisicamente, pois sempre me preocupava em conseguir qualquer alimento ou outra coisa para deixar mais feliz o meu interlocutor.
Lembro bem que aos domingos - o dia de feira na cidade à época -, muitas daquelas pessoas que eu já conhecia me procuravam para pedir um quilo disso ou daquilo, pra arranjar uma havaiana, para que eu desse qualquer coisa. Sabia bem das necessidades de cada um e na medida do possível sempre possibilitava um sorriso naqueles rostos tão envelhecidos pelo sol e pelas desilusões. E assim, com a ordem do meu pai, eu ia lá na vendinha de Dom ou de Zé Preto, ou ainda na mercearia de seu João, e saía com qualquer coisa para um e pra outro. E não foram poucas as vezes que levava pessoas para almoçar em casa, muitas vezes pouco conhecidas, mas só pelo prazer em poder servir afastando a fome por alguns instantes.
Foi nesse itinerário de amizade com os humildes sertanejos que um dia conheci uma senhora já bastante idosa, com sinais de quem havia sido muito bonita na mocidade, mas que na época, pela pobreza e sofrimento, era apenas uma velhinha. O seu nome era Constância, mais conhecida por Constança. Conheci essa mulher no meu andajar pela feira, nas minhas lides domingueiras, correndo de um lado pra outro. Morava sozinha, num local um pouco afastado da cidade, de onde só saía para ir à cidade no dia da feira.
Dona Constança conhecia minha família, sabia que eu era filho do prefeito. Contudo, ao pedir que lhe desse alguma coisa não tinha a intenção de se aproveitar disso, tenho a máxima certeza. Verdade é que fui criando um carinho todo especial por aquela senhora, garantindo sempre que todos os finais de semana ela recebesse uma feirinha. Quando eu não podia estar em Poço Redondo ela se dirigia até minha casa, onde minha mãe, D. Peta, conhecedora daquela mulher e de sua história, já estava com tudo providenciado.
E foi numa dessas vezes que ela chegou lá em casa e ficou conversando com minha mãe por mais tempo que o costumeiro, que acabou dizendo que gostava tanto de mim que tinha a certeza de que quando ela falecesse eu daria o seu caixão. Quando retornei e minha mãe me falou sobre isso fiquei sem jeito e até assustado. Mas o que fazer, se era desejo dela que eu servisse mesmo num instante inusitado e difícil. E fiquei matutando sobre isso. Onde eu estivesse ficava na minha mente a lembrança desse pedido.
Minha mãe já havia dito a ela que não se preocupasse não, pois mesmo que eu não estivesse por lá quando falecesse ela não deixaria de ser enterrada com dignidade. E ela se foi desse mundo justamente quando eu não estava por lá. Soube do fato ainda na capital e fiquei muito triste, mas ao mesmo tempo reconfortado porque o seu desejo havia sido atendido. E que ela descansasse em paz, orei.
Passados alguns anos, lendo alguma coisa sobre a história de Poço Redondo, principalmente sobre a forte presença do cangaço na região, procurei outras fontes para conhecer melhor a história dos filhos do lugar que fizeram parte do bando de Lampião. E dentre todos - e são mais de trinta - uma figura se destacava, que era José Francisco do Nascimento, nome de batismo, o Zé de Julião como era também conhecido, e no bando do capitão alcunhado de Cajazeira.
Esse homem, de uma biografia inigualável no sertão, após deixar a lide cangaceira quando Lampião foi morto, seguiu a vida política, sendo candidato a prefeito por duas vezes – vergonhosamente roubado nos dois pleitos - e acabou sendo assassinado pelos fantasmas do poder. Sua família era das mais abastadas da região, com muitas terras e incontáveis cabeças de gado, e o nome de seus pais era Julião do Nascimento e Constância do Nascimento.
Quer dizer, aquela senhora minha amiga e que tanto ajudei era a mãe de um dos homens mais importantes da história de Poço Redondo e outrora havia sido uma portentosa latifundiária. Um dia havia me pedido que desse o caixão para ser enterrada quando morresse. É assim mesmo. São as coisas da vida.




Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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