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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 27 de julho de 2010

EU E LAMPIÃO (Crônica)

EU E LAMPIÃO

Rangel Alves da Costa*


Calma, não é bem o que estão pensando não. Não vivi nos bravios tempos do autêntico cangaço sertanejo e nem de longe sou parente do Capitão. Quem dera ser, honra maior não haveria no meu ressequido e árido sangue nordestino. Quando Virgulino morreu meu pai ainda não era nem nascido. O filho de Dona Emeliana veio ao mundo dois anos depois, em 40. E dentre o ano que ele foi emboscado, em 1938, até o meu nascimento, em 1963, lá se foram vinte e cinco anos. Contudo, posso dizer que convivi e ainda convivo com Lampião.
Como já devem ter percebido, sou sertanejo de raiz e caule, broto e praga de chão, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. E foi naquelas redondezas, beirando as brenhas e se entrincheirando pelas caatingas, que o Capitão e o seu bando praticamente fixaram moradia durante os últimos anos de sua vida. Mesmo antes disso, andando pelas distâncias nordestinas, não demorava muito e o homem chegava por ali, onde mantinha vínculos de amizade muito fortes com poderosos da região.
Quando estava nos arredores do lugarejo mandava logo um coiteiro avisar ao meu avô materno Teotônio Alves China, o China, um respeitado comerciante do lugarejo, que providenciasse comida que em tal dia e tal hora ele chegaria por lá. Se não confiasse, se não fosse realmente amigo, jamais mandaria avisar ode estava e quando faria uma visita.
E Dona Marieta, coitada, minha avó, colocava as mãos na cabeça e ficava em tempo de endoidar. "Mai o que foi Marieta, só pruque o cumpade Lampião vem aqui você fica assim, e ói qui aqui ele nunca foi um estranho pra nóis não, pelo cuntraro. É nosso amigo e bom amigo. Entonce deixe de avexamento e vá arrumar os cabrito". Então minha avó respondia: "Mai num é isso não China, o poblema é qui o Pade Artur vai tá aqui na merma data qui o Capitão chegar. E cuma vai ser, Deus e o diabo numa casa só?".
Esse fato realmente aconteceu. Os livros relatam, mas nada se compara em ter ouvido essa passagem da boca dos meus avós. E contavam causos e causos, muitas coisas que na minha idade eu nem atinava sobre sua importância. E realmente o que não faltava era assunto sobre Lampião, pois o homem parece ter escolhido Poço Redondo como uma segunda casa sua. A primeira era a caatinga, com varanda de xiquexique e assento de mandacaru. Mas a família era grande, era muita, espalhada por todos os sertões nordestinos.
Desse misto de temor e reverência, aliado ao fato de que o homem sempre estava por ali desafiando as volantes, verdade é que mais de trinta filhos de Poço Redondo seguiram a trilha do bando de Lampião. Mocinhas muitas novinhas, ainda na adolescência, e se encantavam com os rapazes do bando e seguiam sertão adentro na vida de amor cangaceiro. Assim foi com Adília, Sila, Enedina, Rosinha e outras. Dentre os meninos de Poço Redondo estavam, por exemplo, Cajazeira, Canário, Elétrico, Mergulho, Novo Tempo e Zabelê.
Zabelê era meu tio. Quer dizer, tio de meu pai e irmão de minha avó Emeliana Marques Costa. Nascido Manoel Marques da Silva, ainda menino entrou pro bando do Capitão. Quando este morreu, junto com sua amada Maria Bonita e mais nove cangaceiros, na madrugada nordestina e triste de 28 de julho de 1938, na Gruta do Angico, ali mesmo em Poço Redondo, nas beiradas do Velho Chico, o meu tio Zabelê desabou no mundo, que até hoje ninguém da família tem notícia onde foi parar. Antigamente, as irmãs – era filho único – faziam longas viagens por outros estados distantes na esperança de reencontrar o irmão, coisa que nunca foi possível. Zabelê é nome de passarinho e talvez tivesse voado.
Não cheguei a conhecer o filho Cajazeira, o Zé de Julião que morreu emboscado quando já havia deixado a vida e cangaceira e era político influente em Poço Redondo, mas conheci muito sua mãe, Sinhá Constança, numa amizade de avó e neto e cujas circunstâncias já relatei aqui numa crônica denominada "Essas coisas da vida". Só pra citar, a coisa que ela mais me pedia é que não a deixasse sem caixão quando morresse. Palavra de sertanejo como foi cumprida a promessa.
Mas não é só isso não, pois quando morava em Poço Redondo e todas as vezes que chegava por lá encontrava Lampião, Zé Rufino, cangaceiros, volantes, coiteiros e jagunços num proseado só. Dentro de casa, pelas salas e quartos. É que meu pai, Alcino Alves Costa, um dia ainda moço se interessou pela vida desse povo e nunca mais teve sossego nem deu sossego a eles, pois vive nas mesmas trilhas catingueiras recolhendo causos e estórias, depoimentos verídicos e de "vi dizer" para povoar o seu mundo de apaixonado escritor das coisas matutas e cheias de valentia e bravura.
Nesse trotar de trote já escreveu mais de seis livros sobre a saga cangaceira e o sertão. É autodidata, mas hoje é escritor de fama, requisitado por universidades, simpósios, palestrando na Academia Sergipana de Letras, no estranho mundo de Brasília e participando de muitos outros eventos. Lá em casa todo dia é um pesquisador diferente, desconhecido ou amigo, do quilate de Federico Pernambucano, Antonio Amaury, Paulo Gastão, Oleone Coelho Fontes, Antônio Kydelmir, Manoel Severo, João de Sousa Lima, Antonio Porfírio, Juarez Conrado e tantos outros.
Conheço alguns e por outros sou conhecido. Mas é assim mesmo. O que realmente importa é que sou amigo de Lampião. É como se eu tivesse seu sangue correndo pelas veias, com prazer, com um orgulho danado.





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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