SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 19 de julho de 2010

FARINHA COM AQUILO (Crônica)

FARINHA COM AQUILO

Rangel Alves da Costa*


Quando se tem o que comer, no sertão se come cedo. Nem dá o meio-dia e os meninos já estão todos avexados, malinando pelos cantos, doidinhos pra abrir a boca e pedir que a mãe traga seu pratinho. Os menorzinhos começam logo a chorar, e choram quase toda hora porque a fome parece que é de minuto a minuto. Isso quando tem o de comer, pois quando não a mãe coloca qualquer enganação pela boca e faz com que durmam novamente. Daí há pouco vem o berreiro de novo, ouvindo-se na malhada, cortando o silêncio do sertão, atiçando o olhar dos passarinhos que só faltam pousar na mão.
É um perigo passarinho na casa de sertanejo pobre. Pode ter vida curta. A qualquer momento Toinho pode botar ele na brasa sem colocar nem um pingo de sal. Por isso passarinho é cismado, marca presença, faz voo rasante, canta e vai embora para o pé de aroeira logo em frente. Que não me venha baleadeira, pois sou amigo da família, sou passarinho de manhã e tarde. Sou também o passarinho do sonho do menino, canto noite adentro sem parar cantar. Mas é melhor não confiar...
Como dito, pertinho do meio-dia, quem tem prato pra espalhar e tigela pra fumegar é hora de derrubar sobre a mesa. Quem não tem, o que fazer? Ali mesmo no fogareiro se avista tudo que tem. Se tem uma panela no fogo é porque só tem aquilo mesmo, e nem adianta procurar comida em outro lugar porque comida nunca sobra em casa de sertanejo. Quando são três panelas é porque no almoço terão o feijão com gorgulho, o arroz quebrado, de segunda ou quarta, e a carne cheirosa demais. Eita tempero bom! Não, é que a fome se delicia com tudo...
Carne de preá é boa, mas não tem mais preá se não tem mais mata fechada, mais toca de macambira, mato rasteiro cortante; nambu ou perdiz só quando chove muito e junta água nos banhados e elas vão matar a sede e depois acabam matando a fome, e diga-se o mesmo com outros animais menores e de carne gostosa, como a galinha do mato, o caititu, a lebre. Até o veado se caçava nas beiradas dos tanques. Uma questão de sobrevivência, quando o homem mata por necessidade de matar a fome que aflige os seus.
Outra carne muito boa é a de carneiro, quentinha ainda para o caldo não visgar, e a de ovelha sem ser muito gorda, pra gordura não virar sebo dentro do prato. Mas quem tem milhão pra dar tanto dinheiro num quilo de carneiro, bode ou ovelha? Aquilo que é ali mesmo do sertão se tornou um luxo que quase ninguém pode mais comer, de tão caro que é.
A carne de boi ou de porco nem se fala, pois são as carnes que todos gostam e também gostariam de ter no fogão ao menos três vezes por semana, quando muito. Gente que ia pra feira há dez anos atrás e trazia três quilos de carne de gado e dois de porco, agora dá graças a Deus se puder comprar um quilo de carne de gado de segunda, com mais osso do que pelanca, e um de porco magro. O interessante é que ninguém quer matar pra comer a galinhazinha que tem no quintal. O sertanejo passa fome, mas faz de tudo pra não acabar de vez com sua única criação. Muitos não matam de jeito nenhum dizendo que é pra chamar mais, até que chega um farrista da madrugada e leva a coitada pra comer tomando pinga.
Mas já estava em cima da hora do de comer e naquele dia até o fogareiro estava apagado, as brasas dormindo nas cinzas e uma tristeza danada. Naquele dia não havia grão nenhum pra botar no fogo, não apareceu caça nenhuma pra cozinhar, não tinha nada o que comer. A mulher já tinha revirado por todos os lados e não achou nem um pedaço de toucinho esquecido. Mortadela não tinha, bolacha não tinha, massa de cuscuz não tinha, não tinha nada. "E agora, o que fazer se já tá na hora do menino se avexar de barriga vazia e pedir que leve o pratinho lá pra frente?", matutou o pai triste que só, uma velha baraúna em pé, sem saber o que fazer nem dizer.
Tomara que goste do que está assistindo na televisão e esqueça que tá na hora de comer, disse à esposa. Ali tinha televisão porque em todo lugar, seja na casa mais pobre do mundo, que não tenha mais nada pelo barraco inteiro, mas tem que ter uma televisão, não tem jeito. Também se não tiver televisão vai ser menino nascendo que não acaba mais.
De repente, Zequinha grita: "Mãe, tô com fome". "E agora, meu Deus, nunca chegamo a uma situação dessas de não ter nada mesmo para oferecer, nem um tiquinho de nada", disse o pai aflito. Foi quando a esposa falou: "O que achei foi um restinho de farinha que tá ali. O jeito que tem é dizer a ele que só tem isso mesmo. O que fazer, né meu veio?".
E o pai seguiu com um pratinho de farinha na mão em direção ao filho. Chegando perto dele, de olhos lacrimejando, explicou a situação e perguntou se queria a farinha seca. E para seu espanto Zequinha respondeu:
"É assim mesmo pai, vou comer a farinha pensando que estou comendo aquilo ali..." E quando o pai olhou pra televisão viu uma família almoçando feliz numa mesa que tinha de tudo que se podia imaginar.
E Zequinha engolia a farinha seca e comia os outros pratos com os olhos...





Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Flor da Vida (Suelzy Quinta) disse...

Sempre um belo e emocionante texto!
E este muito reflexivo por sinal...
Tras uma profunda mensagem sobre
a desigualdade entre os seres
humanos... Mas quer saber, talvez
o menino do conto, seja bem mais
feliz do que a familia de mesa
farta... Amigo, aplausos a ti!!!
Desejo a você uma ótima e abençoada
semana... Meu carinho... Abraços