EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 38
Rangel Alves da Costa*
Despertou ainda na madrugada povoado por sonhos e pensamentos. Um dia daquele não era para ser esquecido, um entardecer daquele não poderia ser esquecido, um adormecer igual aquele não teria como ser esquecido. Decidiu apenas que não era momento para parar, sentar e juntar tudo novamente para tirar conclusões, mas deixar a vida seguindo para saber quais lições práticas poderia tirar daquilo tudo. O problema é que se falasse a alguém sobre os últimos acontecimentos poderia até mesmo ser chamado de louco.
Preparou um café e abriu a porta para ver o mundo. Tudo normal e bonito, encantador e maravilhoso como é o amanhecer no interior. Uma semiescuridão se mistura a cores amareladas, os pássaros começam a cantar, outras aves fazem os seus barulhos, os bichos levantam e começam a buscar alimento. Se o seu pai estivesse ali já teria tirado o leite quentinho do peito da vaca, sua mãe já havia impregnado as redondezas com o aroma forte do café e o cuscuz de milho ralado já estaria pronto para ir ao fogão. Coisas belas do interior, mas que de repente se tornam apenas em saudades. E como dói...
Caminhou um pouquinho para estirar as pernas, como os mais velhos costumavam dizer, passou para os lados do barracão para ver se alguma coisa estranha havia acontecido, porém a única anormalidade que encontrou foi constatar que as portas estavam abertas. Entrou para verificar, mas tudo no seu devido lugar, a não ser uma cruz de madeira muito rústica e parecendo também muito antiga colocada na parede dos fundos, por trás da mesinha. Estranho, logo imaginou.
Tinha certeza de que nem ali havia qualquer tipo de cruz nem que ele tinha colocado aquela ali. Porém não quis pensar demais sobre isso, afinal poderia ter sido algum dos meninos ou mesmo um dos moradores do lugar que havia achado por bem arranjar aquela cruz diferente e colocar ali. Verdade é que estava bonita, majestosa no seu devido lugar. E no seu devido lugar porque já deveria ter feito o mesmo, colocado uma cruz bem bonita ali para proteger o barracão e as pessoas. O que não conseguia entender bem era como alguém teria entrado no local se tinha certeza que a porta estava trancada. Mas tudo bem, poderia ter até sido um esquecimento de sua parte. Tantos problemas que não difícil daquilo ter acontecido.
Em seguida caminhou até debaixo daquela árvore familiar, sentou no mesmo banco onde havia estado ontem e por um instante se viu refazendo todas aquelas cenas. Lembrava de tudo perfeitamente. Os pássaros chegando, os outros bichos, a mudança no tempo, a tempestade, a chuva que caiu e não molhou e a presença do anjo ali, bem à sua frente, dizendo palavras que caberiam ao tempo decifrá-las completamente. Como já havia prometido a si mesmo, não entraria em detalhes no pensamento. O dia seria reservado para outras coisas. E quantas coisas tinha para resolver.
Voltado despreocupado para casa, de repente ouve o barulho de um carro se aproximando. Parou bem ao seu lado. Não demorou muito e o prefeito, no banco do carona e sem sair do veículo, deu bom dia e foi logo dizendo outras coisas:
- Resolvi vim até aqui só pra me certificar que não saiu chateado ontem da prefeitura. Achei que saiu meio afobado, mas é assim mesmo. Continua o que lhe propus viu, afinal uma oportunidade dessa de se ganhar dinheiro sem trabalhar não aparece todo dia, não é mesmo? E pode contar também com uma verba que vou arrumar pra transformar esse barracão em algo maior, bonito e bem feito. Vamos fazer uma associação disso aqui e trazer muito dinheiro pra cá, o que não falta é verba. Vou fazer porque quero fazer disso um grande centro de captação de votos, um grande meio de arranjar eleitor. E o funcionamento é muito simples: você ganha o seu dinheiro, recebe outro tanto pra investir aqui, diz que é uma coisa séria e que é em benefício do povo, mas sabendo que na verdade tudo é só de fachada, um meio de atrair eleitor, embolsar as verbas que serão destinadas pra cá, fazer constar tudo de mentirinha num livro e pronto, a coisa tá feita e todo mundo fica com o seu pedacinho de bafunfa. Você vai empregar gente aqui pagando um salário e ficando com dois, vai receber cestas de alimentos e ficar uma parte pra você e negociar outra parte, vai aprender a fazer a coisa certa com o dinheiro que vem lá de cima. E eu, do meu lado, vou dar uma de quem tá preocupado com seu crescimento político, com sua força diante do povo carente, mas tudo isso na cara de pau, que é pra ninguém saber do nosso acerto. E você, meu amigo, vai continuar vivendo com o jeito simples e humilde que sempre teve, mas com muito dinheiro, o que é mais importante. E não dou seis meses pra você ter um carro novinho parado aqui em sua porta. É assim meu filho, é assim que funciona. Então, estou aguardando que retorne até lá que é pra gente fechar tudo, tá certo – E mandou que o motorista ligasse o carro para retornarem.
Lucas estava em pé, calado, e assim permaneceu. Mas antes de deixar o local, o prefeito mandou que o motorista retornasse um pouco para dizer:
- É a hora de aproveitar, pois mandei verificar a situação da propriedade de vocês lá na prefeitura e em outros órgãos, e pelo que me disseram a coisa não anda tão boa não. Há algumas irregularidades, impostos atrasados, falta de licença pra isso e aquilo e coisa e tal. Por isso acho melhor você aproveitar, pois do contrário a qualquer momento pode perder tudinho. E isso eu não posso resolver, pois dívida ou paga ou perde a propriedade. Continue pensando. Até.
- Safado – Foi a única a única palavra que Lucas encontrou para o momento.
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário