EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 50
Rangel Alves da Costa*
O mundo dá muitas voltas, isso é verdade, e a predestinação das coisas para o reencontro obedece sempre a leis não comandadas pelo próprio ser humano. Nunca é de todo impossível que o vento faça retornar para debaixo da mesma árvore a folha seca que caiu e foi embora. Dizem que a água não passa duas vezes no mesmo lugar, mas verdade é que ninguém sabe dizer quais os vapores que subiram aqui debaixo e se transformaram em chuva para cair novamente sobre a terra. Eis mistérios que envolvem também o ser humano. Estes são envolvidos sim, e pelas forças que ele mesmo não possui nenhuma explicação, pois tudo surpresa, acontecimento, reencontro...
A mão predestinada do destino bem que poderia estar ali pairando sobre as cabeças dos dois ex-namorados, agindo ao seu modo silencioso e frutificante, para que aquele momento de reencontro fosse como um abrir de portas para que o amor cumprisse sua sina interrompida. Mas não, desta vez não, pois aos poucos Lucas passou a olhar para Ester apenas como uma amiga que estava ali depois de uma longe viagem. O mesmo acontecia com ela, inicialmente temendo que o coração apertasse, mas agora totalmente aliviada e contente.
Ao se despedir de Lucas e do Padre Josefo, vez que voltaria já embaixo da lua com os meninos para a cidade, reafirmou o seu compromisso de que voltaria ali mais vezes, principalmente a partir do próximo ano, quando já estivesse habilitada para exercer plenamente seus ofícios na medicina. Afirmou que era propósito seu reservar sempre algumas horas das tardes de sábado para atender pessoas necessitadas ali mesmo no barracão.
Seguiram de retorno como vieram, alegres pela estrada enfeitada pelo clarão da lua que já havia despontado no céu. Não demorou muito e, depois de fazerem uma rápida faxina, o Padre Josefo também se despediu cansado pelo dia agitado, porém produtivo e gratificante. Ainda naquela noite ia falar com fiéis, conversar com os anjos, sentir o que o Senhor teria a lhe dizer.
Lucas ainda fez sua caminhada noturna antes de se recolher. Pelos arredores mesmo, observando pequenas situações somente existentes na noite, os barulhos quase que silenciosos dos animais nos matos ao redor, o vento leve que cortava o ar e propiciava uma sensação de frio bom pelo corpo, a lua que brilhava intensamente e as estrelas faiscando feito velas acesas louvando a natureza. Coisa bonita de se ver é a noite, e quantos encantamentos ela carrega sobre si e quantos mistérios se escondem na sua cor já misteriosa.
Enquanto caminhava pelos cantos, lhe veio a mente a figura bela de Ester e a certeza de que tinha saído daquele entardecer sem nenhuma marca mais visível no sentimento, principalmente no coração. Não sabia bem a reação quando a reencontrasse, como se fosse chegar a um encontro marcado com ela alguns anos atrás, quando namoravam praticamente às escondidas. Mas era muito melhor assim, com cada um vivendo sua vida nova como se o outro fosse apenas uma pessoa boa que conhecesse.
Não estava com fome. O bolo e os refrigerantes foram suficientes por aquele resto de dia. Mas estava com fome de outras coisas, de ouvir uma música, de ler alguma coisa na bíblia, de acender uma vela e orar pelos seus. Sentia saudades da irmã Lúcia e talvez escrevesse uma carta para ela. Não gostava de telefone, mas sim de enviar mensagens através do velho papel de carta e do envelope que tanto contentamento e tristeza trazem para pessoas.
Preferia escrever com a luz apagada e uma vela acesa nas proximidades, de um jeito mais rústico e verdadeiro. A letra parecia sair mais bonita assim. As ideias também, iluminadas que eram pelas chamas que se moviam lentamente diante dos seus olhos. Gostaria de ter uma lamparina, dessas bem antigas, para acender com querosene de vez em quando, mas era difícil de encontrar. As pessoas acham que o novo é tudo e vão jogando no lixo muito daquilo de bom que possuem, se desfazendo da própria história, de um longo processo de vida e raiz familiar.
Assim, vão-se embora os candeeiros, o ferro de brasa para passar roupa, a vitrola muito antiga, os discos de vinil, os cuidados em ter uma pequena horta medicinal no quintal, o relógio de bolso, o oratório de madeira antiga envernizada, seus santos num cantinho do quarto, suas receitas muito antigas repassados pelas bisavós. Ninguém faz mais mingau de pará para o filho doente, não pisam mais o mastruz para misturar com leite e sarar quase tudo, não comem mais abóbora com leite nem cuscuz ralado em casa mesmo, não escolhem a roupa mais bonita para ir à missa aos domingos. Quase ninguém vai mais à missa, dá a benção aos mais velhos, um bom dia ou boa tarde ao conhecido que passa, oferece ao vizinho um pedaço de bolo de ovos que fez. Ninguém quase vive mais, essa é a verdade.
Lucas nunca se viu pensando tanto nas coisas antigas como naquele instante. Acendeu a vela, fez suas orações, pegou o papel e a caneta, rabiscou alguns versos e depois pegou a bíblia para ler um pouco, sentado no sofá como gostava sempre de ficar. Ligava a televisão só para ver as imagens de vez em quando, pois o som era reduzido. E assim leu até o sono chegar por completo.
Até que dormiu bem, tranquilo e pesadamente, até umas três horas da manhã, quando do quarto ouviu um estrondo assustador. Haviam derrubado a porta da frente de sua casa.
continua...
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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